Criar uma Loja Virtual Grátis
Partilhe esta Página



Total de visitas: 9538
1º Capítulo
1º Capítulo

Aqui vocês poderão ler e conhecer um pouco da história. E resolvi ir um pouco além do primeiro capítulo... Espero que gostem e opinem!!! ;) 

ATENÇÃO: O livro POKER FACE já está a venda no clube de Autores!!!

https://clubedeautores.com.br/search?utf8=%E2%9C%93&where=books&what=poker+face&sort=&topic_id=

 

SUMÁRIO

 

A PRIMEIRA IMPRESSÃO - 9

UMA SEGUNDA CHANCE - 62

A HORA DA VERDADE - 81

TIME EM CAMPO - 121

REFORÇO - 146

 

 A PRIMEIRA IMPRESSÃO

 

Acordo sobressaltada pelo pesadelo, mas não me recordo de nada. Não sei nem mesmo o meu nome. Tudo que sinto é o desespero deixado pelo sonho ruim, o suor frio, e o grito preso na garganta. À medida que meu coração se acalma eu me lembro quem sou: Cristina Batista Carter, filha do doutor Ricardo Batista, oncologista de renome, primeiro nome na lista dos pacientes em todo o país. – Isto é, para aqueles que podem pagar, claro! – Sinto um gosto amargo já conhecido, é o desgosto sobre minha estória. Meu pai não foi sempre assim, ele costumava ser um homem bom e honrado, e eu sei que sou a responsável pela sua mudança.

Levanto da cama e vou ao banheiro para lavar o rosto. Fico encarando meu reflexo no espelho. Tenho a pele morena, cabelos castanhos escuros e traços marcantes, costumo dizer que tudo no meu rosto é grande: nariz, boca, olhos. Não sou a rainha da beleza, mas também não assusto ninguém. Mesmo com a minha pele jambo, sou meio pálida, palidez de escritório.

Vou à cozinha buscar um copo d’água, tudo silencioso. Esta é a minha hora favorita: Três horas da madrugada! Enquanto bebo minha água penso em todas as estórias de terror lidas e filmes assistidos, existe sempre a coincidência do horário, sempre entre três horas. Ou três e quinze, ou ainda três e trinta.

Um barulho estrondoso me tira do devaneio, como se algo tivesse sido jogado no chão, mas isso não me assusta, ao chegar à sala encontro o vaso no chão ainda rolando com uma trilha de água e margaridas, minhas flores favoritas, claro que os meus gatos são os responsáveis pela bagunça. Irineu e Nair são irmãos, e foram adotados já adultos, há cinco anos. Agora eles estão com oito, mas isso não os tornou mais comportados. Olho a bagunça e dou um sorriso, não adianta, eles são incorrigíveis. Enquanto limpo a bagunça tento lembrar do sonho. O pânico já se dissipou, mas a sensação de familiaridade com aquela agonia não. E nada acontece! Eu não me recordo do sonho, então resolvo voltar a dormir, pois terei de levantar daqui a poucas horas para iniciar meu dia.

Acordo às seis horas, e a gata Nair está deitada na lateral do meu corpo, tiro-a com cuidado, me visto pondo calça leasing e camiseta regata, ao chegar à cozinha tomo meu café da manhã: iogurte zero, torrada com ricota e um café preto para acordar de vez. Vou direto para academia a duas quadras de casa, retorno às oito horas, tomo banho, me arrumo e vou para agência de publicidade onde trabalho, a três estações de metrô de distância. No caminho mantenho minha rotina, penso que preciso sair da casa do meu pai. Em seguida me lembro de tudo que me faz permanecer lá, tudo isso em apenas cinco minutos.

Trabalho na agência Premium, localizada na Avenida Paulista, um dos principais polos de negócios da cidade de São Paulo, a mais importante capital do Brasil.

Ao atravessar as portas de vidro cumprimento Andréia, a linda loira que trabalha na recepção. Ela me diz que o diretor de criação está na minha sala há quinze minutos. Solto um suspiro imaginando que o dia não será bom:

- Bom dia André, tudo bem?

- Olá Cristina, na verdade não. Não recebi o orçamento de material para campanha de fidelização dos cimentos Souza.

- Sinto muito, posso reenviar agora mesmo.

- Por favor, faça isso... e, Cristina? Espero que isto não se repita, sim? Eu precisava desta informação ontem!

- Claro André, por gentileza, você pode me informar quando não receber algo solicitado? O e-mail foi passado ontem à tarde e supus que havia recebido porque houve a confirmação de entrega, mas acredito que estes programas não são 100% seguros. Da próxima vez te dou uma ligadinha para confirmar!

André faz uma cara de constrangido, mas se recupera rapidamente.

- Combinado Cristina, estou na minha sala, pode checar com a equipe e me passar o status atual dos jobs antes do almoço?

- Pode deixar André, assim que conseguir falar com toda equipe eu te atualizo sobre os jobs.

- Combinado! – André voltou para sua sala sem graça, ele sabe que deu um fora. Só queria pegar no meu pé, por algum motivo que não entendo, a minha existência parece incomodá-lo. Droga! Tenho que melhorar a minha imagem com esse cara. Não posso perder esse emprego.

O dia passou rápido, é sempre assim na agência, quando olho novamente já são dezoito e trinta, eu deveria ter saído há trinta minutos, mas não sou a única ainda ali, quando estou chegando à porta de vidro da recepção encontro o André, ele parece que gostaria de encontrar um buraco para se enfiar dentro, está muito constrangido.

- Boa noite André, bom fim de semana para você.

- Cristina... – Silêncio – Queria pedir desculpas por hoje de manhã, acho que fui meio grosso com você.

- Não se preocupe, eu não sou de vidro...

- Ainda assim eu quero me desculpar, eu recebi seu e-mail com o arquivo e apaguei sem perceber, foi uma falha minha, não tem desculpas, a nossa correria diária não pode ser usada como desculpa para ser grosseiro com os outros.

- Relaxa. Tá tudo certo, ok? – Abro um sorriso simpático, preciso aproveitar a oportunidade.

- Posso te dar uma carona?

- Hum, sinceramente? Vou chegar mais rápido se for de metrô, neste horário a Paulista está um inferno. – Será que eu fui simpática demais? Eu me pergunto.

- Isso é verdade, mas veja o lado bom, podemos conversar e tirar a má impressão!

- André, tá tudo bem, não há má impressão, não da minha parte! – Ok! Usar o sentimento de culpa a meu favor também é uma boa estratégia!

- Certo! Eu me rendo! Há da minha parte, por favor?! Já sei! Vamos tomar um chopp e, quando o trânsito melhorar, eu te dou aquela carona.

- Lei seca? – Eu digo. Ele suspira.

- Puxa! Você não é fácil mesmo!!! – E sorri – É só um happy hour entre colegas que trabalharam até mais tarde numa sexta-feira! Provavelmente vamos encontrar o pessoal daqui! Que tal?

- Ok, ok! Vamos lá!

Ao chegar no barzinho de preferência da galera da agência, não encontramos ninguém. O bar é simples, mas também é estiloso e aconchegante. Com decoração rústica e iluminação pálida.

- Que tal aquela mesa ali no fundo?

- Ok, pode ser!

Na verdade pensei que não seria uma boa ideia, pois faz parecer que estávamos nos escondendo, mas fiquei sem graça de dizer isso, e ele me achar pretensiosa.

- Deixe-me ajudá-la – Ele puxa a cadeira para mim, depois se senta – Por favor, dois chopps! – Ele diz ao garçom, então me olha: – Quer pedir algo mais? Ou outra coisa?

- Não, o chopp está ótimo! – E o silêncio domina o ambiente. Fico tentando pensar em algo para dizer que preencha o silêncio constrangedor – Como foi a sua semana, André?

- Meio maluca, muito trabalho, muita cobrança, muita reflexão, o de sempre. Acho que para o atendimento não é muito diferente, às vezes até pior? Embora vocês às vezes nos peçam algumas peças como se estivem pedindo um pastel: “carne com queijo, por favor! ”, ou “por que tá demorando tanto? É só um pastel! ” – E dá um sorriso fofo e irresistível que nunca tinha reparado.

O André é um dos diretores mais jovens da agência, além de talentoso e inteligente é extremamente lindo, alto com seus um metro e noventa, olhos castanhos, cabelo castanho, corpo definido, mas sem exageros, e claro, a clássica palidez de escritório, afinal, somos paulistanos e aqui geralmente não importa a cor, você é pálido! Sorrio.

- Como se vocês não fizessem o mesmo: “Por favor, precisamos cotar o preço deste material. Façam três cotações com amostras de cada fornecedor, preciso disso até às quinze horas na minha mesa! ”... Isso é trabalho de produtor gráfico, sabia?! – Sorrio – Mas você tem razão. É isso! A rotina é difícil, tem que ser muito político, e às vezes até se fazer de burra.

- Como assim? Qual foi a situação vexaminosa?

- Sabe o Cristiano da rede de farmácias do Rio? – Ele faz sim com a cabeça – Então, ele vive querendo marcar nossas reuniões de apresentação de campanhas ou mesmo de brienfing para sexta-feira, assim posso passar o fim de semana no Rio. Ele quer me mostrar a cidade. Para fugir coloquei a culpa na agência, que não arcaria com os custos, e ele gentilmente me convidou para ficar hospedada na casa dele!

- Como você fugiu disso?

- Dei uma de louca! Falei que era uma ótima ideia porque minha tia adora o Rio e nunca mais foi, então, se economizássemos na estadia, eu poderia bancar sua passagem. E ela iria comigo.

- E por que você não disse simplesmente que tem um apartamento em Copacabana? – E o silêncio cai sobre nós.

-...Como você sabe disso?

- Desculpe, Cris! Posso te chamar assim? Todo mundo sabe quem é o seu pai! – Mais silêncio.

- O Mauricio sabe quem é o meu pai?

- Acho que você sabe a resposta.

- Inferno! Ele tá sempre se metendo... Desculpe! Nem sei como chegamos neste assunto.

- Assédio! Estávamos falando sobre o assédio do Cristiano – Um sorriso maldoso brinca em seus lábios – É aquele cara meio gordinho e desajeitado, certo? – Seu sorriso aumenta. Ele está tentando aliviar a tensão e acaba conseguindo.

- É ele mesmo! Jesus! Não sei o que fiz para merecer isso!

- Rótulos! Eles são uma merda! Todo mundo rotula que os atendimentos das agências são feitos por vadias! Algumas são, mas tem mais a ver com a pessoa do que com a função.

- É, acho que está certo! Rótulos são uma merda! – E um novo silêncio se instalou, mas dessa vez não foi desagradável. Ao contrário, eu estava me sentindo à vontade com a companhia do André, o que era uma novidade.

No quinto chopp eu me manifesto:

- Este é a “saideira”, André. Para alguém que vai dirigir você já bebeu demais. Deveria pegar um táxi.

- É! Tô pensando em fazer isso, mas tenho dó porque vai dar uma boa grana daqui até em casa, mas tudo bem!

- Você é um diretor! Grana não é problema! Onde você mora?

- São Caetano do Sul.

- O quê? Cê é louco? Vai dar uma pequena fortuna! Deixa eu pensar... Droga! Se eu não tivesse bebido...

- Você me levaria, e então eu teria de trazê-la de volta. Não daria certo.

- Já sei! – E um novo silêncio, mas desta vez é constrangedor – Eu moro aqui perto. Podemos ir para lá, eu faço um café, uma janta, acho que vai ajudar a passar o efeito do álcool. Dando certo você vai embora, mas se perceber que não melhorou dorme lá em casa. Temos dois quartos de hóspedes.

- Temos?! Você é casada? – E procura minha mão esquerda que não está à vista.

- Não! Eu não sou casada, mas eu moro com meu pai – coro de vergonha – Sabe como é! Filha única, chantagem emocional, culpa... – Cale-se! Grito comigo mesma.

Por que estou falando isso? E principalmente, por que estou convidando este cara do trabalho para dormir na minha casa? Não somos amigos e é a primeira vez que trocamos mais que meia dúzia de palavras!

–... não sei porque disse isso... fique à vontade para recusar a oferta se não estiver a fim, não consegui pensar em mais nada – Fique quieta! Grito de novo.

Cada hora parece mais que você está se oferecendo.

- Não, tudo bem! Eu agradeço e aceito o convite. Seu pai não se importa que você leve... Amigos para casa?

- Bem, eu não tenho o hábito de levar “amigos” para casa. Além do mais, ele não aparece por lá tem uns quatorze ou quinze dias. Vamos?

- Sim, é claro!

Chegando em casa, percebo o carro do meu pai na garagem.

- Maravilha! Ele está em casa.

- Cristina, eu me viro, não quero arranjar problemas para você.

- Não seja bobo André, que problema você pode arranjar para mim? Não sou mais uma adolescente inocente, pura e besta!

- Eu sei, jamais pensaria tal idiotice, mas pai é pai. Se vocês não se veem há tantos dias, certamente vão querer matar a saudade sem a interferência de um estranho.

- Olha, não posso obrigá-lo a entrar, mas posso garantir que você não estará atrapalhando nenhuma confraternização!

Após hesitar, ele resolve entrar.

- Boa noite doutor Ricardo, este é meu amigo, André – Meu pai avalia a bela espécime ao meu lado, o André é muito bonito, ao estilo Keanu Reeves, até na palidez.

- Um amigo? Que surpresa! Nestes anos todos foram apenas você e a adorável Beatriz. Sabe rapaz, teve um momento em que até cheguei a pensar que elas eram mais do que amigas! – Um sorriso forçado.

- Claro que pensou! É difícil saber como é a relação de amigos, quando não se tem nenhum – Devolvo ao meu pai.

- Bem, eu tinha uma melhor amiga... – Ele me fuzila com os olhos e essa eu perdi feio. Xeque-mate. Foi um golpe baixo. Em seguida se vira para o André como se nada tivesse acontecido – Bom, foi um prazer conhecê-lo rapaz, Cristina, só vim buscar algumas trocas de roupas, tenho que voltar para Brasília, tenho alguns pacientes por lá e depois devo ir para um congresso em Los Angeles. Se precisar de algo, ligue para minha secretária, está bem? – Ele nem olha para mim enquanto diz isso – Você me ouviu? – Agora sim ele me olha.

- Sim, eu ouvi... – E antes que eu fale qualquer coisa ele sai da cozinha deixando na bancada o seu copo de água, a única prova de que a sua presença foi real, e não um fruto da minha imaginação. André olha para mim.

- Uau! Me desculpe a indiscrição, mas o que foi isso aqui? – Respiro fundo.

- Uma amostra do que é a minha vida!

Sirvo gelo, limão e agua com gás enquanto preparo o nosso jantar. Preparo um salmão grelhado acompanhado de suflê de couve flor e arroz integral. Simples, fácil e nutritivo. Como sobremesa sirvo o bolo de maçã quentinho no qual sou viciada com sorvete de creme.

- Nossa! Você sabe conquistar um homem pelo estômago!

- Sério? Preciso começar a usar meus superpoderes, então! E aí? Como se sente?

- Quer que eu vá embora?

- Não é isso! Desculpe! Se quiser ficar será um prazer. Vou adorar ter companhia para variar um pouco.

- Acho que em parte entendi porque você mora com seu pai. Você não mora de fato com ele. Quantas vezes você o vê por mês?

- Sei lá, umas duas ou três vezes por mês. Às vezes mais, às vezes menos. Ele deve dormir em casa apenas uma ou duas vezes por ano, acho que já teve ano em que não dormiu, não sei. Geralmente quando ele vai dormir aqui eu não durmo.

- Desculpe a intromissão, mas por que você ainda mora, mesmo que em tese na mesma casa que ele?

- Ele não me deixa sair. Acredite, eu já tentei.

- Eu não entendo.

- É uma longa estória e não gostaria de contá-la agora, talvez um dia... Sinceramente, nem entendo como iniciei este assunto. Nunca falei sobre isso com ninguém, nem mesmo com a Beatriz, se bem que... não preciso falar nada, ela é minha amiga de infância, assistiu tudo desde o início, de camarote.

- Como assim?

- Nossas mães eram amigas, do estilo que faziam tudo juntas. Ficaram até gravidas num período próximo. A Bia é apenas 3 meses mais velha do que eu. – E mais uma vez ficamos nos encarando em silêncio.

- Ok! Vou pôr minha curiosidade de lado, dá para perceber que esse assunto é muito sério e te deixa tensa. Hoje é sexta feira, não é dia de assuntos pesados. Que tal um filmezinho? Vamos alugar algum online? Qual o seu gênero favorito?

- Hum! Todos! Depende do clima. – Silêncio.

Putz! Ele vai achar que estou lhe passando uma cantada. Eu e minha boca maldita!

- Nada de drama! Que tal uma comédia?

Ufa! Ele fingiu que não entendeu. Ótimo! Sorrio.

- Não sou muito fã de comédias.

- Há cerca de quinze segundos você disse que gostava de tudo!

- Certo! Deixe-me pensar... Hum... Suspense!

- Suspense não ajuda ninguém a relaxar. Ao contrário. Talvez deixe qualquer um tenso, pelo menos os bons!

- Eu gosto! Posso?

Por que estou fazendo isso? Tipo, jogando charminho para cima dele. Alguém me bate, por favor!!!

- Claro! Mas o convidado sou eu! Então acho que poderia escolher o filme.

- Tudo bem, pode ser!

- Que tal um clássico?

- Gênero?

- Como eu sou legal, que tal um suspense?

- Ah! Você é mesmo muito legal! Filme?

- "O Iluminado".

- Maravilha! Adoro esse filme e dá muito medo.

Nem percebemos a saída do meu pai que nem se despede, e isso não me surpreende. Então assistimos o filme acompanhado de pipoca amanteigada e guaraná. A certa altura da noite escutamos um barulho vindo da cozinha e o André dá um pulo.

- Será que alguém entrou na casa? Seu pai saiu pela cozinha, talvez não tenha trancado a porta.

- Não. São os meus gatos, com certeza. – Eu digo me levantando.

- Aonde você vai? – Ele segura o meu braço.

- Vou à cozinha! Ver o estrago. É normal, não que todo gato faça isso, os meus fazem.

- Não, fique aqui, eu vou ver o que está acontecendo.

E eu espero, e nada do André, quando estou me levantando para ir atrás dele, ele retorna, mas não está sozinho.  Ele está acompanhado de dois homens e eles estão armados. Prendo a respiração.

- Bela casa, vadia! Não esperávamos que estivesse trabalhando hoje. Cliente novo?

Fico muda, não consigo dizer nada. Preciso controlar o meu medo, se conseguir fazer isso existe uma boa chance de eu conseguir sair desta situação.

- A vagabunda se acha boa demais para responder a minha pergunta?

- Não. – Sai sufocado – Não! – Consigo desta vez – Por favor, não nos faça mal, leve tudo que quiser, nós vamos colaborar!

- Está tentando negociar conosco, piranha? Deixe eu lhe mostrar quem manda aqui sua... – Estrelas. Vejo estrelas quando ele me bate e não consigo ouvir o novo adjetivo, provavelmente algo tão singelo e meigo quanto o vagabunda, vadia, piranha e sei lá mais o quê, a consciência retorna.

Estou caída, mas as atenções estão voltadas para o André, preciso aproveitar a oportunidade. Me arrasto até a mesa de centro, quando percebo que meu agressor vai me olhar congelo e torço para que ele não perceba a minha mudança de posição, ele volta a falar com André e pelos sons, sei que ele está sendo agredido. Levanto o corpo o suficiente para alcançar a mesinha, abro o fundo falso, tiro minha arma e disparo sem pestanejar. Um tiro na perna de cada um. Se eles tiverem sorte não vai matar, mas vai impossibilitar uma fuga. Então eu anuncio:

- Polícia internacional. Vocês estão presos!

Pela expressão no rosto do André, acho que ele está tão passado que esqueceu a dor. Seu rosto está machucado e quando penso nisso percebo o ardor no meu próprio rosto. Maravilha! Vai inchar mais que um baiacu, como na propaganda de cerveja. Perfeito!

Algumas horas depois, junto com o delegado de polícia local, resolvo as burocracias e a questão está encerrada da forma mais discreta possível. Não posso chamar atenção para mim. Sou uma agente infiltrada e a minha vida é uma fachada, quer dizer, infelizmente apenas uma parte dela é fachada.

Vou até o André, que está sentado no sofá, olhando sem ver a cena no qual o filme foi pausado.

- André? Sinto muito. Você está bem?

-... Não! Na verdade, não.

- Você não deixou te examinarem, por favor, me deixa dar uma olhada nisso aí?!

- O que aconteceu aqui hoje, Cristina? O que foi isso tudo? – Respiro fundo.

- Eu sinto muito! Me desculpe, não consegui impedir que você se ferisse. Não sei o que houve, não sou tão distraída, não sei como não percebi que se tratava de algo diferente do habitual.

- Como assim? Você sabia que seria vítima de um assalto? Você me usou como isca?

- Mas é claro que não! Eu não sabia que seria assaltada, como poderia saber?

- Você disse polícia internacional, você disse...

- Por favor! Nunca mais repita isso! Estes bandidinhos escolheram a casa errada para assaltar. Ponto! Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A polícia local me conhece porque tenho que fazer uso de recursos que são considerados ilícitos sem a autorização da justiça. Nós trabalhamos em parceria. Eu preciso da ajuda deles e vice-versa... agora, por favor, vamos pôr um ponto final neste assunto. Não posso entrar em detalhe para não colocar em risco meu trabalho, e a sua integridade. Você entende isso?

- Certo, Cristina. Tô indo embora.

- Não! Por favor. Fica! Não quero que você vá embora, não agora, não depois de toda essa merda. É estranho se eu te disser que sinto como se nos conhecêssemos há muito tempo?

- Seria estranho se eu lhe dissesse que sinto o mesmo?

Com essa senti um friozinho agradável descer pela espinha.

- Fico feliz em ouvir isso, André. Acho que nosso filme já era. Que tal se eu lhe mostrar o seu quarto? Quer beber algo antes? Algo forte? Ou um chá? Um leite quente?

- Leite quente? Parece o tipo de coisa que se oferece a crianças!

- Pois é! Eu adoro leite quente! Mas os adultos geralmente tomam chá, e eu detesto! Acredite, já tentei aprender a gostar, mas não rolou.

- Tá certo! Vou aceitar o leite quente porque eu também adoro! – E algo dentro de mim se aqueceu. Ah, droga! Tô mesmo ferrada!

Após o leite fui mostrar toda a casa ao André, algo bem rápido. Ofereci o quarto que fica de frente para meu.

- Imagino que o quarto no final do corredor é o do seu pai?

- Exato! Embora acho que deveria ser o primeiro do corredor, já que ele entra e sai numa velocidade atômica, enfim. – Dou de ombros.

- Sabe Cris, você me deixa intrigado. Cada minuto ao seu lado e eu fico mais bobo.

- Intrigado? Bobo? – Solto uma risada nervosa – Esperava que você dissesse que a cada minuto que fica ao meu lado ficasse com mais medo, ou talvez asno!

- Por que diz isso?

- Pense em tudo que você presenciou desde que me chamou para tomar um chopp? Talvez se você pudesse imaginar o tamanho da roubada que estava se metendo, jamais teria me chamado. – Silêncio e bingo. Eu estava certa. Assustei o cara, e não sei por que sinto uma dorzinha no peito ao constatar isso. Acho que estou meio carente!

- Na verdade Cris, eu estou pensando o quanto eu fui tolo em demorar tanto para te chamar para sair. Você tira forças, sabe-se lá de onde, para enfrentar dois bandidos armados, para lidar com seu pai. Tô me sentindo pequenininho assim – Ele mostra com o indicador e o polegar. – Você é demais!

Fico sem fala. Não sei o que dizer, tenho que lembrar a mim mesma que preciso respirar. – Ah! Por favor! Alguém me traz aqueles dois assaltantes de volta? É muito mais fácil lidar com eles do que com essa situação! – E então o clima muda, a tensão palpável entre nós se torna constrangimento.

- Boa noite Cristina, quando estiver saindo eu tranco a porta e passo a chave por debaixo do portão, ok? – E sai querendo fugir. E eu fico lá, parada como uma idiota. Por que não disse nada? Eu sabia o que dizer, por que não disse? Inferno!

Entro no quarto, tiro minha roupa e fico só de calcinha e sutiã, acho minha camiseta preta do Harry Potter e coloco. Abro a porta deixando um vão, assim o Irineu e a Nair podem entrar se quiserem. Olho o relógio. São três e dez.

- Nada de pesadelos para você está noite, o horário já passou. – Digo em voz alta para mim mesma. Pois é! Tenho o hábito de falar sozinha. Loucura pouca é bobagem.

Algumas horas depois eu acordo, encharcada de suor, e um zumbido no ouvido, o som é indistinto até que percebo que se trata do meu choro, à medida que me controlo, sinto novamente aquela sensação familiar de pânico e desamparo.  Mas desta vez eu não estou sozinha:

- Tá tudo bem, Cris! Eu estou aqui com você! Tô bem aqui com você – Diz André enquanto me ampara. Não sei como fui parar em seu colo e ele me nina como se eu fosse uma criança. O mais constrangedor é que ao me conscientizar sobre cada um desses detalhes ao invés de me recompor eu passo a chorar ainda mais.

Quando consigo me recompor não consigo soltá-lo, fico ali, com a cabeça deitada em seu ombro e me sinto... em casa! Quando ele se move como que para me por novamente na cama, reajo instintivamente.

- Por favor, fique aqui comigo. Não vai embora!

- Não vou a lugar nenhum. Agora tenta dormir um pouco, estamos cansados, quando você acordar eu ainda estarei aqui.

- Obrigada! – E sinto meu corpo relaxar imediatamente. Pouco tempo depois, adormeço.

Quando acordo estou me sentindo sufocada, o André acabou deitando e me prendeu em seus braços e pernas. Me movi o mais lentamente possível para me libertar do abraço dele, quando finalmente consegui, e pensei que poderia escapar de um momento constrangedor, ouço a sua voz:

- Bom dia, Cris – E solta um bocejo – Conseguiu dormir bem?

- Hum, para ser sincera sim. Dormi muito bem depois que você veio para cá. Obrigada! – Ele sorri.

- Também dormi melhor depois que vim para cá.

- Eu te coloquei numa confusão dos diabos, lhe devo um café da manhã decente!

- Ah, não se preocupe! Preciso pegar o meu carro que ficou no estacionamento para voltar para casa.

Silêncio.

- Bem, são o quê? Nove horas? Vamos lá! Hoje é sábado. Tome pelo menos um café antes de sair, vou descer para prepará-lo, se quiser tome um banho, na cômoda tem toalhas, é só pegar, tudo bem?

- Feito! Vou tomar um banho então.

- Até daqui a pouco. – Ele sorri e meu coração acelera,

AiMeuDeus! O que está acontecendo comigo? – Quando lembro que estou apenas de camiseta quase morro de vergonha, volto para o quarto e ouço o barulho de água caindo, ele está no chuveiro. Pego uma camiseta baby look branca, um short-saia jeans que adoro, um par de tênis dourado, e me troco rapidamente. Desço correndo para preparar o café, parando apenas um pouquinho para fazer carinho na Nair e no Irineu.

Quando estou terminando de pôr a mesa ele chega.

- Uau! Tá parecendo um café da manhã de hotel! – Sorrio.

- Pois é! Eu sempre ponho tudo na mesa, no geral, não como quase nada, mas gosto de ter todas as opções disponíveis!

- Se você comesse tudo que põe na mesa, ficaria um bom tempo aqui!

- O café está pronto, mas se preferir tem espresso. Também tem sucos, chás, chocolate e leite. Sinta-se à vontade.

- Bolos?

- Sim, maçã e laranja.

- Parecem ótimos!

- Eu amo estes pães de frios!

- É assim todos os dias, então?

- Não! Esse é o abuso do fim de semana. Durante a semana eu escolho um item sempre acompanhado de um copo de iogurte e o meu café com leite. E depois vou me matar na academia.

- Você faz de manhã? Eu prefiro à noite.

- Eu também!

- Não entendi!

- Preciso fazer academia de manhã. Bom! Vamos mudar de assunto? Não posso falar sobre isso, e não quero mentir para você! – Sem me dar conta do meu gesto, pego em sua mão – É estranho! Me sinto à vontade com você, como se pudesse dizer tudo! Mas a verdade é que eu não posso.  É para o seu bem! – André apenas assente.

E depois disso comemos envolvidos por um silêncio agradável. De vez em quando fazemos algum comentário sobre a comida.

- Cris, foi ótimo. Muito obrigado! Mas agora preciso buscar o meu carro e ir para casa.

- Eu é que agradeço pela companhia. Desculpe por toda confusão. Espero que tenha um restinho de fim de semana melhor – Sorrio como quem pede desculpas.

- Você só pode estar brincando! O começo do meu fim de semana foi ótimo. Só dispensaria este hematoma.

E automaticamente levo a mão onde levei um tapa – AiMeuDeus! Nem me olhei no espelho hoje. Devo estar medonha. Que vergonha.

- Não se preocupe! Ficou um pouquinho escuro, mas não chegou a ficar roxo, e nem inchou!

- Espere até amanhã! Meu corpo tem efeito retardatário, assim como eu! Amanhã vou parecer um urso panda! – Ele sorri.

- Veja o lado bom: Como mulher você pode usar maquiagem para disfarçar. Eu é que não posso fazer uso deste recurso!

- Você pode sim... – Ele faz uma expressão mal-humorada – Ok! Você está certo!

- Nos vemos então na segunda-feira na agência, ok?

- Ok!

E ficamos ambos olhando um para o outro, como se estivéssemos aguardando que um dos dois criasse coragem, e dissesse algo mais. Sou a primeira a ceder:

- O que você vai fazer hoje?

- Nada de especial. Talvez ir ao cinema. Escolher um livro para ler. Algo relaxante.

- Boa ideia! Não te ajudei muito neste quesito. Acho que vou te plagiar. Vou na Livraria Cultura escolher um livro.

- Você gosta de ler?

- Eu amo! Sou totalmente viciada em livros. Tenho uma compulsão, não passo um mês sem comprar pelo menos um livro.

- Mas tem que ir na livraria? Não pode comprar um livro digital? Onde fica a sustentabilidade hein, mocinha?

- Hum! Nem todos os livros estão disponíveis no formato digital, além do mais, gosto do livro físico. Torna a estória mais real, mais palpável!

- Sei... se quiser, eu te espero, e assim vamos juntos. A livraria fica perto da empresa, onde deixei o carro.

- Perfeito. Fique à vontade. Vou tomar um banho rapidinho.

Quando saímos e pegamos o metrô, percebemos que as pessoas ficavam nos encarando, e quando as olhávamos elas desviavam o olhar, até que vejo nosso reflexo. Mesmo maquiada, é possível perceber que meu rosto está machucado e o do André está ainda pior que o meu. Não resisto e caio na risada.

- Percebeu que estão todos nos olhando?

- Pois é, não entendi até agora! – Diz exacerbado. E eu viro seu rosto para o nosso reflexo no vidro.

- Olha o nosso reflexo.

- Deus! As pessoas devem achar que eu bati em você, e depois levei uma surra por agredir uma mulher.

- Pois é! E eu não tenho lá muita vergonha na cara porque já estou aqui com você de novo!  – Digo erguendo uma sobrancelha com ares de indignação.

- Ou podem pensar que fomos assaltados e levamos a maior surra.

- AiMeuDeus! O que vamos dizer na agência na segunda-feira? Nós dois machucados?

- Relaxa Cris, a gente diz que foi para o happy hour e na saída fomos assaltados.

- E como vamos explicar que você está mais machucado do que eu?

- Eu sou homem, eles tentaram ser mais persuasivos comigo para que eu não reagisse.

- Pode ser! Mas não gosto e nem posso chamar a atenção para mim. Não agora.

- Hey! Eu tô aqui! Posso te ajudar! Já que não consegui fazer nada quando tudo aconteceu. Vou chamar a atenção para mim, dizer que lutei com os caras, essas coisas que todo mundo quer ouvir, vão até esquecer da sua participação.

- Obrigada! E você me ajudou sim, viu?! Se não fosse por você não sei o que poderia ter acontecido conosco. Você reagiu quando eles me bateram e foi essa distração que me proporcionou tempo suficiente para... rendê-los.

- Não foi grande coisa, ele te deu um soco e levou outro, mas aí os dois me pegaram.

- Foi loucura da sua parte! Eles estavam armados! Poderiam ter atirado em você. É o mais comum na atualidade. Não são bandidinhos inexperientes. Eles sabiam o que estavam fazendo, senão teriam atirado em você.

- Por que você diz isso?

- Latrocínio, que é roubo seguido de morte. A pena é pesada. Principalmente se eles não forem réu primários e eu tenho certeza que não são. Você nos salvou, e isso poderia ter lhe custado a sua vida!

Ficamos em silêncio. Acho que ele está pensando no que acabei de dizer. Quando saímos do metrô ele decide me acompanhar até a livraria porque não vai até lá há algum tempo.

- Adoro este lugar, sabia? Esse clima, ninguém fica em cima de você... dá para pegar um livro, e folhear. Até ler um trecho. É demais! – Eu digo.

- Também gosto! Acho que vou aproveitar para comprar um livro também.

- Muito me admira! Onde fica sua preocupação com a sustentabilidade, senhor André? – Ele revira os olhos.

- Há-há-há! Muito engraçada.

Passamos um tempo examinando títulos e lendo alguns trechos, separando uns livros para comprar.

- Nossa, já estou com fome! – Diz olhando o relógio em seu pulso – Cris, não acredito que já estamos aqui há tanto tempo!

- Que horas são?

- Três horas da tarde!

- AiMeuDeus! Sério? Por isso que também estou ficando com fome. Quer comer em algum lugar aqui por perto? Ou prefere voltar para minha casa? Se quiser, a gente pega o seu carro e vamos para lá. Eu posso preparar algo para nós. Depois você vai! Está aqui até agora mesmo!

- Acho que vou aceitar a sua proposta, sabia? Tem vários lugares que eu gosto de comer por aqui, mas a gente já come durante a semana inteira.

- Foi o que pensei. Então vamos?! – E me inundo de alegria, não sei por quê... quer dizer, finjo que não sei o motivo.

Chegando em casa resolvo fazer um churrasco na churrasqueira elétrica porque é mais rápido.

- Para acompanhar vou servir um antepasto de berinjela, pães de alho picante, queijo coalho e arroz integral. Tudo bem?

- Tudo ótimo! Desse jeito não vou embora. Em casa eu teria comido pastel no café da manhã e agora almoçaria uma lasanha congelada ou um miojo. – Dou um sorriso.

- E depois se mataria na academia? Não é possível que alguém coma tanto carboidrato e consiga se manter em forma. Eu sei! O metabolismo dos homens é diferente do nosso, mas ainda assim... Só carboidrato em forma de alimentos nada saudáveis... o que foi? – Ele sorri maliciosamente.

- Manter a forma? Você acha que estou em forma? – O seu sorriso aumenta e eu fico roxa.

- Oras, André! Você deve se olhar no espelho com uma certa frequência. Entendeu o que eu quis dizer. Você tem um corpo atlético, do tipo que se cuida. Não parece o tipo de cara que come um monte de bobagem e passa todo o tempo livre tomando cerveja.

- E isto é ruim?

- Nada do que eu disse é ruim. Cada um tem o seu estilo de vida. Aquilo que se encaixa melhor com os seus gostos e objetivos.

- Então me diz uma coisa Cris, qual o seu mantra?

- Equilíbrio – Digo sem pensar – Em muitos momentos é uma utopia, mas tento viver com equilíbrio. Acho que o perigo mora nos excessos.

- Boa reflexão. Tem tido sorte?

- Hum... não! – Ambos rimos – Que tal almoçarmos? Como você gosta da sua carne?

Após o almoço sentamos para conversar.

- Sou viciada em cafeína. Uma refeição não é uma refeição completa sem um cafezinho. Está servido?

- Sim, é claro. Mas... e os excessos? – E sorri

- Como disse, é uma busca e às vezes uma utopia, seu sem graça!

- Mamãe sempre disse que sou uma gracinha!

- Aposto que sim! – E saio da sala sem dar oportunidade para uma resposta. Após o café levo tudo para cozinha.

- Você lava e eu seco?

- Não precisa André, mas obrigada! Eu deixo a louça escorrer e depois guardo.

- Ok. Que tal invertermos um pouco?

- Oi? Não entendi!

- São quase seis horas da tarde! Já estamos juntos há quase vinte e quatro horas e muita loucura aconteceu no seu mundo. Pelo que percebi, você não está com a agenda cheia neste fim de semana, e eu também não. Por mais estranho que seja, não quero ir embora, mas as minhas roupas já estão me puxando para casa. Que tal você ir comigo para São Caetano? Eu te trago amanhã.

Fico em silêncio, não esperava por isso, embora esteja feliz com a proposta. O silêncio se prolonga.

- Entendi, Cris. Não precisa ficar muda. É só dizer não! Como uma garota já me disse, eu não sou de vidro, não vou quebrar.

- Eu quero ir André! De verdade! Só estou com medo.

- Por quê?!... Cristina, nós somos amigos! Tudo bem, há bem pouco tempo, mas não deixa de ser verdade... Escuta, eu não sou idiota. Claro que quando eu te chamei para sair estava interessado na possibilidade de que algo mais acontecesse, mas eu entendi! Você não tá a fim, beleza! Não estou soltando fogos de artifícios pela rejeição, mas estou curtindo te conhecer melhor. Quero ser seu amigo. Não estou com segundas intenções, até mesmo porque você pode me socar facilmente pelo que percebi. – Ele ergue uma sobrancelha de forma sugestiva.

- Você tem o dom de me deixar sem palavras, sem chão. Tenho medo disso. Aconteça o que acontecer, para mim, a sua integridade é prioridade máxima, mas para atingir o meu objetivo, eu posso ter que mudar. Por favor, confie em mim, mesmo que eu me torne uma pessoa diferente, confie em mim. Existe um motivo para tudo isso e eu não posso revelar a você até o desenrolar de toda essa estória, e... Eu não sou indiferente a você. Eu só não posso agora.

- E o que tudo isso quer dizer?!

- Que eu vou pegar uma troca de roupas e a gente vai para sua casa. Por favor, pense em um programa para hoje à noite. Já volto!

Chegando à casa do André, eu fico encantada. Não parece de forma alguma a casa de um homem solteiro. Ele mora em um condomínio fechado de casas, daquelas que parecem casas de bonecas, com direito a cerca branca e gramado florido.

- Margaridas! Você tem margaridas no seu jardim! São minhas flores favoritas.

- Também gosto de margaridas. Quando o paisagista veio questionar o que eu queria, eu disse que ficaria por conta dele, portanto que fosse simples e houvessem margaridas.

- Ficou perfeito! Mas é bem incomum, um homem que tem seu tipo favorito de flores?

- Muito engraçada! Cresci numa casa cercada por mulheres. Minha mãe e duas irmãs. É inevitável, a gente aprende, observa. Aposto que tem coisas que você aprendeu pela convivência com os seus pais.

- Não vai me mostrar a parte interna da sua casa? Ou vamos ficar por aqui mesmo? – Digo em tom de brincadeira para mudar de assunto de uma forma leve. Ele percebe minha intenção e entra no jogo sem forçar a barra.

- Que linda André! Não me leve a mal, mas não parece a casa de um homem. É tão arrumada. Adorei!

- É sim! Estereótipos são uma droga! Não acha?

- Touché!

- Bobinha! Deixe eu lhe mostrar o resto. Não é grande como a sua, mas é aconchegante. Eu gosto!

- É perfeita, André! Não gosto de casas gigantes.

- Sua casa é gigante.

- Errado! A casa do meu pai é gigante. Eu sou uma sem-teto-próprio. Preciso mudar isso... – Falo as últimas três palavras mais baixo, como quem fala para si mesma.

- Como já disse, eu gosto! Atende às minhas necessidades. Como não sou muito sociável, não tenho quarto de hóspedes porque transformei o segundo quarto em escritório.

- Tudo uma graça. E aí? O que vamos fazer?

- Como assim? Você quer conhecer as baladas de São Caetano?

- Eu sou mais caseira, mas vou deixar por sua conta. O que faremos hoje?

- Também sou mais caseiro. Eu estava pensando em ficar por aqui. Estou meio cansado, um programa mais tranquilo, pode ser?

- Claro! Vamos continuar o filme de ontem?

- Ah, não! Filme não é uma boa ideia para nós! Bom, pelo menos não foi um bom começo. Tá meio friozinho. Que tal se fizermos um fondue de queijo com um pouco de vinho tinto?

- Pode ser, desde que depois façamos um de chocolate!

- Fechou. Mas preciso olhar na geladeira... Hum, não tem nada!

- Tudo bem. Você tem o vinho? – Ele faz sim com a cabeça – Ok, então vamos pedir uma pizza e uma brotinho de chocolate, que tal?

- Qual sua pizza favorita? – Ele diz já com telefone na mão.

- Quatro queijos. – Onde está o vinho? Penso com meus botões.

Algum tempo depois estamos sentados na sala tomando vinho enquanto as pizzas não chegam.

- Há quanto tempo você está na Premium?

- Há muito tempo. Cheguei lá como estagiário há quatorze anos. Fiz serviço de banco, trabalhei como assistente de todos, até que fiquei definitivamente com o Marco. Quando ele pediu demissão para ir para concorrência, o Mauricio me pediu para ficar temporariamente no cargo. Depois de um ano ele falou que me deixaria em definitivo, e estou lá desde então. Já faz onze anos, acredita? Como o tempo passa rápido...

- É verdade. E que estória bacana! É inspirador você ter galgado o seu lugar na empresa.

- Acho que sim! Tenho orgulho das minhas conquistas, eu venho de uma família humilde, mas unida e amorosa.

- Eu invejo você. Gostaria de ter isso. Uma família unida e amorosa. – E ficamos em silêncio com nossos pensamentos, até que a chegada da pizza interrompe nossos devaneios.

- Deve ser a pizza. Quer mais vinho?

- Quero sim. Ele é ótimo.

Após a pizza.

- Cris, eu sei que é estranho. Mas eu queria entender melhor o que foi tudo aquilo ontem. A gente mal se conhece, mas para mim as coisas mudaram, você não é mais apenas uma colega de trabalho. Eu gosto de você. Da sua companhia. Eu me importo, e também me preocupo! O jeito do seu pai? A sua atitude no assalto? O modo como lidou com a polícia? Os seus gritos de madrugada? É muita coisa, fico tentando encaixar as peças, e a única coisa que sinto é que deveria sair correndo, para longe de você. Mas não quero!

- Talvez você devesse ouvir os seus instintos. Eu não posso explicar quase nada do que você está me questionando. Não posso porque alguns assuntos são difíceis demais para mim, outros são proibidos e alguns eu nem sei a resposta. Acho que você devia mesmo ouvir os seus instintos e ficar bem longe de mim! – Levanto e vou até a janela. Quando viro para me afastar, dou de cara com ele, que está a poucos centímetros de mim. Ao invés de me esquivar, eu congelo. Ele se aproxima ainda mais, ficando a menos de dez centímetros para me tocar.

- Não deixei de ouvir o que você disse mais cedo. Você disse que não é indiferente a mim, o que isso quer dizer?

- André, eu...

- Não vou forçar a barra, Cris. Não faço esse tipo, mas me responde! – E se aproxima ainda mais, quase colando seu corpo no meu. Quase! – O que você quis dizer com aquilo?

Eu posso sentir o calor que vem do seu corpo. Preciso levantar o pescoço para olhar o seu rosto. Nesta distância seus ombros parecerem ainda mais largos e convidativos. Ele segura o meu rosto entre as mãos, e me vejo apoiando em sua cintura.

- Eu quis dizer exatamente o que eu disse! Você me deixa sem chão e isso é perigoso! Isso pode nos trazer problemas, eu... – Ele me beija. Não é um beijo rude. É delicado, como se estivesse testando se será aceito ou não, e eu me rendo jogando os braços sob aqueles ombros grandes e me sinto no paraíso. Meu coração dispara, minha cabeça gira e não quero soltá-lo nunca mais.

Para minha surpresa, ele não tenta nada além disso, apenas me conduz até o sofá e eu me sento em seu colo. Nossos beijos se tornam mais intensos e suas grandes mãos passeiam do meu pescoço até a minha clavícula, depois faz o mesmo caminho com os lábios e eu acho que vou sofrer uma combustão instantânea. Para minha decepção ele para, como quem quer provar que não me levou para sua casa com a intenção de me seduzir. – Tarde demais! Já fui seduzida! – Digo para mim mesma em pensamento.

 - Você quer mais vinho?

- Não. Já chega de vinho. Tô interessada em outra coisa! – E o puxo para mais um beijo.

E continuamos ali nos beijando, nos provocando, mas sem passar disso. Algum tempo depois:

- Acho que vou dormir. Não descansamos horas suficientes essa noite.

- Uau! Você sabe acabar com a minha autoestima. Estamos aqui no maior amasso, e você diz que está com sono? Preciso de terapia!

- Bobão! Isso se chama autopreservação! Aliás, pelo que me lembro, você tem apenas um quarto, não é mesmo?

- Sim, é verdade, e se você se sentir mais à vontade, eu durmo no sofá-cama do escritório. Sem problemas.

- Bobão de novo! Não sei se você lembra, mas já dormimos juntos na noite passada.

- É verdade, nós dormimos, mas até então, não tinha rolado nada entre nós!

- O fato de ter rolado “algo” entre nós não muda o fato de que podemos deitar e “dormir” como ontem!

- Sério?! Você quer mesmo só dormir?! Não sei se consigo deitar do seu lado e só dormir depois que te beijei pela primeira vez.

Ele me beija, mas estou pensando em suas palavras:

- Só dormir? Sim! É claro! É o certo. Trabalhamos junto, lembra?! Não quero que as coisas fiquem estranhas entre nós!

- As coisas sempre foram estranhas entre nós!

- Sério?!

- Sério! Eu sempre me vi nervoso na sua frente, e depois ficava discutindo internamente porque agia daquela forma, e você também! Sempre parecia nervosa quando tinha que falar comigo, talvez por isso eu tenha mantido a esperança desde que você chegou, há duas semanas, de um dia tomar coragem e te convidar para sair!

Meu queixo bate no chão. Estou completamente passada!

- Você lembra que estou há exatamente duas semanas na agência? Caramba! Por essa eu não esperava!

- Você não é muito observadora. Se fosse já teria notado o meu interesse. O Roberto ficou a fim de você também, mas disse para ficar bem longe, e como somos amigos, ele se afastou.

Meu inconsciente grita comigo dizendo que estou fazendo tudo errado. – Droga! Não acredito nisso!

- Você e o Roberto são amigos próximos? Há quanto tempo?!

- Entramos como estagiários juntos, mas enquanto eu levei três anos para conseguir um cargo de gerência, ele levou apenas três meses. É um cara brilhante!

- Três meses para ir de estagiário à gerente?!... Então se conhecem desde o programa de estágio?

- Na verdade, não. Nos conhecemos no ensino fundamental. Na época era chamado primeiro grau, estávamos na terceira série, e ele estava vindo de outra escola... tinha havido alguma tragédia familiar... por que está tão interessada no Roberto? Você é a fim dele? – Sua expressão não é nada boa com essa pergunta.

- Não! É só curiosidade. Não sabia disso... que vocês... são amigos... pensei que eram apenas colegas de trabalho, só isso!

- Bom, para mim parece que você não gostou de saber disso!

- André, você descobriu que tenho alguns segredos, e saber que você conhece outra pessoa na empresa de forma tão íntima é preocupante.

- Não caio nesta, Cris! Já deixei bem claro que não vou dizer nada a ninguém, nem mesmo ao meu amigo de infância. Você ficou estranha quando soube que sou amigo do Roberto. Não entendo! Ele tem alguma coisa a ver com os assuntos que você não pode discutir comigo? Ele se meteu em alguma encrenca? Porque se for isso, você está errada! Ele é um bom sujeito. Talvez seu único defeito seja ser cafajeste. Mas até onde eu sei, isso não é crime...

Empalideço e o meu inconsciente está gritando comigo: - Mas que merda! Você está fazendo besteira atrás de besteira, Cristina!

- Para! Para com isso, André! Não posso falar nada, você não pode comentar com ninguém, e mesmo que tivesse algo haver com o Roberto, eu não poderia contar a você, mas... Só para constar: Não tem nada a ver com o Roberto!!... Só... Só confia em mim, está bem?!

- Vou arrumar a cama no escritório. Pode ficar com o quarto.

- Ah! Qual é a sua, André? Você está fazendo uma tempestade num copo d’água!

- Qual é a sua Cristina? Ah! Esqueci! Você não pode falar. Tenha uma boa noite!!

- André? – Nada – André? – Ele bate à porta do escritório – AiMeuDeus! Onde eu fui me meter?! Dá para piorar?!

Mais tarde acordo gritando e ouço a voz do André sussurrando palavras carinhosas, enquanto me abraça.

Não falamos nada após eu me acalmar. Ele se deita ao meu lado e eu mantenho a cabeça em seu peito, ainda sinto a umidade das minhas lágrimas. Sei que deixei sua camiseta ensopada, mas ele não parece incomodado, apenas me mantém em seus braços, afagando os meus braços em um movimento de sobe e desce que está começando a me perturbar de uma forma bem agradável.

- André? Me desculpe pelo que houve ontem. Eu sinto muito.

- Tente dormir Cris. Vamos tentar dormir.

Não digo mais nada. Só me aconchego mais em seus braços e ponho a cabeça na curva do seu pescoço, assim me sinto em casa.

No dia seguinte quando acordo fico imediatamente tensa. Estamos dormindo de conchinha. O braço esquerdo que está junto a cama me segura pela cintura me prendendo junto ao seu corpo, o direito está em meu peito por baixo da camiseta regata que estou usando. Quando meu corpo se tensiona, ele desperta, e sinto sua rigidez. Em um milésimo de segundo ele está fora da cama tentando se recompor. É difícil saber quem está mais constrangido.

- Bom dia Cris, vou preparar um café para gente. – Ele diz sem olhar para mim.

- André, tá tudo bem, ok?! Relaxa. Tá tudo bem!

- Não Cris, não tá nada bem. Vou preparar o café para gente. Desculpe.

- Por que está se desculpando? Eu...

- Vou preparar o café... – E sai do quarto apressado. Fico estagnada no mesmo lugar com cara de boba.

Levanto calmamente e vou ao banheiro, ainda sinto o formigamento na pele pelo contato com o André. Ele está ocupando muito mais espaço do que deveria na minha mente.

- AiMeuDeus! Tô parecendo um panda! Como eu vou trabalhar amanhã desse jeito?! Merda, merda, merda! – Ouço uma batida abafada na porta. – Eu já tô saindo, André!

- O café está pronto. Não dramatiza, não está tão ruim assim! – Diz do outro lado da porta.

Então ele percebeu quando acordou a piora no meu rosto, mas não esboçou nenhuma reação. Realmente foi criado entre mulheres!

Tomamos o café da manhã em silêncio. Estamos ambos pensativos. Não sei como agir, sinto que preciso me distanciar dele. – Para o nosso bem. – E sei que isso não vai ser fácil. – Preciso ligar para Bia!

- Eu sei que o meu café é muito menos nutritivo e atraente que o seu! Mas coma alguma coisa, você só tomou café puro e uma fatia de queijo.

- Adoro pizza amanhecida! O café está perfeito, daqui há pouco eu como alguma coisa. – E voltamos a ficar silenciosos. Sinto que estamos pisando em ovos, e foram tantos os escorregões que eu não sei qual deles está causando esse mal-estar entre nós.

- Cris, a hora que você quiser ir embora, é só falar!

- Se quiser, posso ir imediatamente! – Ele bufa irritado.

- Caramba, Cristina! Você não facilita! Como que em menos de quarenta e oito horas estamos discutindo como um casal?! – Solto um sorriso sem graça como quem se desculpa.

- Me desculpe. Você tem razão!

- Acabo de identificar outro problema entre nós. A gente pede desculpas demais!

- Mais uma vez você tem razão! Que droga! Sabe, eu não quero fazer isso, você também não quer, mas temos que conversar. Preciso fazer isso antes de ir embora. Quero te contar algumas coisas.

- Mudou de ideia? A princípio você não podia me dizer nada.

- Nada mudou, mas é possível que mude daqui para frente. Preciso te dar alguma satisfação, preencher algumas lacunas e depois a gente segue os nossos caminhos.

Ele fica em silêncio, como se estivesse processando as minhas palavras e o seu significado.

- Uau! Adoro seu jeito sutil de me dispensar!

- Não, André! Eu não estou te dispensando, eu estou seguindo com o meu objetivo neste lugar. Enfim... como você ouviu ontem, eu sou uma agente internacional. Tenho dupla cidadania por causa da minha mãe que era americana. Vou tentar resumir aquilo que acho aceitável contar para você. Uma ponta do iceberg:

“Passei minha infância no Brasil, mas na adolescência fui para os Estados Unidos com a minha tia Amélia, ela era irmã da minha mãe. Quando completei dezoito anos ela resolveu voltar em definitivo ao país para junto da sua família. Mas eu fiquei por minha conta, não queria voltar porque sabia que meu pai não aceitaria que eu morasse em outra casa, e lá eu estava na casa da família com uma garantia de não estar com ele, entende? – Ele assente. – Enfim, estava vivendo minha vida, estudando várias coisas, sempre gostei de muitas coisas, então eu fiz faculdade de comunicação, cursos de jornalismo, fotografia, propaganda e marketing, aulas de baixo, bateria, algumas artes marciais, tiro ao alvo, teatro. Uma infinidade de coisas. Fiz todos os cursos que quis, a única coisa que não fiz foi estudar medicina como meu pai queria. Precisava contestar sua autoridade em algo e essa foi a batalha escolhida. ”

“Meus problemas começaram quando eu tinha dezenove anos, em uma festa badalada que eu estava, aconteceu um sequestro. Fomos todos pegos como reféns. Estavam todos em desespero e um convidado reagiu. Quando percebi que isto lhe custaria a vida não pensei duas vezes, reagi junto com ele e assim desarmamos dois sequestradores e usamos suas armas para atirar nos outros quatro homens, não houve vítimas fatais, apenas tiros de defesa. O problema é que não se tratava de qualquer sequestro. Descobrimos mais tarde que eram terroristas, e com isso eu e meu colega de batalha entramos para o programa de proteção a testemunhas. No final fomos nós mesmos que garantimos a nossa sobrevivência, um protegendo o outro. Com isso nos intimaram a fazer parte do grupo. Ficamos por quase um ano nos preparando. Deveríamos ficar por um tempo maior, mas fomos solicitados para um caso, e depois outro, e mais outros, e o tempo foi passando. Até que surgiu um caso aqui, no Brasil. Então eu fui designada por já ter vivenciado um caso parecido e pôr ser brasileira. Fim da estória. Isto é mais do que eu poderia te contar. ”

E percebo que o André está tentando assimilar tudo que acabei de lhe contar. Pudera! Nem eu acreditaria nesta estória se ela não fosse a minha! E olha que optei pela versão resumida! Depois de mais alguns minutos de silêncio, ele finalmente se manifesta:

- Que loucura tudo isso. Me parece impossível tudo que acabou de contar!!... E por que não disse o nome do seu amigo?! O que houve com ele?!

Com essa abro um sorriso.

- Depois de toda essa estória, você quer saber justamente sobre meu amigo?

- Não tenta disfarçar! Você não trabalha sozinha, se não disse o nome dele é porque está por perto.

- Já disse que te contei mais do que poderia. Me senti na obrigação de esclarecer alguns pontos. Mas isto acaba aqui! Preciso contar com seu sigilo. Com a sua discrição, e principalmente... eu... eu preciso que você fique longe de mim!

Ele parece ofendido.

- Sabe, não precisava contar toda essa historinha se queria me dar um fora. Quer saber? Estou de saco cheio! Desde sexta-feira que eu só levo fora seu! Pelo menos um por dia. Para mim já deu! Eu vou tomar um banho, enquanto você termina o seu café, e aí, quando quiser, eu te levo em casa. – Levanta e sai.

Fico furiosa.

- Ah não! De novo, não! – Levanto e vou atrás. Corro e entro na sua frente colocando as mãos espalmadas em seu peito – Nada disso! Você não vai me deixar falando sozinha de novo! Você não ouviu o que eu acabei de falar?! Pensa um pouco! Se eu fosse indiferente a você teria lhe convidado para ir na minha casa?! Depois te convidado a voltar de novo?! Vir para sua casa?! Qual a parte do "eu me preocupo com a sua segurança" não ficou clara? Você está me deixando maluca! Não percebe que eu não posso mais?! Eu já te dei demais! Já ofereci mais do que é sensato! Eu... – Ele me silencia com o indicador em meus lábios.

- Estou tentando entender, tentando digerir... Não precisava falar tudo isso, eu só queria que para variar você viesse até a mim, eu só queria isso! – E me beija.

Dessa vez de forma mais ousada, sua língua invadindo a minha boca. Seus braços se fechando em minha cintura, seus lábios descendo pelo meu pescoço, clavícula. Suas mãos descendo até o meu quadril, levando minha perna direita em torno do seu quadril. Nossas respirações estão ofegantes, mas mesmo assim nos beijamos, seu braço esquerdo me prende junto ao seu corpo e a mão direita sobe até chegar a minha nuca, onde me segura com firmeza pelos cabelos. Prendo agora minha perna esquerda em seu quadril e jogo meus braços em torno do seu pescoço, completamente entregue, ele tira a mão da minha nuca para abrir a porta do quarto enquanto beijo seu pescoço, e ouço o seu gemido, então meu celular toca.

Fico tensa na hora. Minha mudança abrupta é um balde de agua fria para o André, que me põe no chão, vou direto até o celular que está em cima da mesa.

- Alô?! Oi! Tudo bem?! – E agradeço mentalmente pela interrupção. Puta Que Pariu! Eu ia para cama com o André! Mas o que eu estou pensando?! Ah, claro! Eu não estou pensando! – Olha, eu não posso falar direito agora. Posso te ligar mais tarde? Agora não dá, te ligo mais tarde, ok? Beijo e tchau! – Desligo.

- Era o seu parceiro?

- Não era ninguém. Essa pessoa não existe! Agora vai tomar o seu banho porque eu preciso ir embora antes que acabe na sua cama. – Sua cara emburrada se desfaz, e naquele belo rosto surge um sorriso de tirar o fôlego.

- Isso não me parece nada mal.

- Você não é muito bom em julgamentos. Isso seria péssimo! Agora vai logo! Anda! – Vou até ele e lhe dou um selinho. Ele abre a porta do quarto e eu o empurro em direção ao banheiro. Ele está andando de costa e eu o estou guiando, olho no olho, quando o solto e me viro para sair do banheiro ele me detém, me vira de frente para ele e me empurra como eu fiz com ele, mas em direção a cama. Caímos rindo, e à medida que a risada passa ficamos apenas nos olhando em silêncio, sérios. Quando percebo que ele vai me beijar, eu viro rosto e o corpo. Ele automaticamente me dá espaço para sair da cama.

- É sério, André! Preciso ir embora! Não posso deixar isso aqui rolar, por mais que eu queira, eu não posso!

Ele suspira frustrado.

- Ok, Cristina! “Eu quero mais não posso porque o meu namorado acabou de me ligar”. Entendi! – E entra no banheiro deixando a porta encostada.

Minha vontade é ir atrás e entra no chuveiro com ele. Mas não posso, e não vou fazer isso! Digo a mim mesma.

- Ah, André! Você não entendeu nada! Quer dizer, não entendeu o mais importante! – E agora sou eu quem suspira de frustração.

Mais tarde estou em casa sozinha. O André me trouxe após sair do banho e pouco falou durante o caminho. Parecia distante e pensativo. Pensei em puxar conversa. Tentar explicar minha atitude, mas preferi ficar em silêncio. Não tenho mais nada a acrescentar. Já falei tudo que podia falar! – Ou Não! – E já baguncei demais a vida dele. Eu sei que ele é uma pessoa correta. Não fará nada para me prejudicar, mesmo que eu o magoe, e sei que vou magoá-lo. Na verdade, acho que já o magoei.

- Obrigada pela carona... E por todo o resto! – Eu disse a ele meio sem graça, e só com um fiozinho de voz – Você gostaria de entrar? – E percebi que não queria que ele fosse embora. Mesmo que o clima fosse ruim, a ideia de tê-lo afastado era pior. E isso sem dúvida era insano da minha parte.

- Não, Cristina, obrigado. – Saí do carro e antes de entrar no portão de casa ouvi seu carro acelerar. Pelo visto ele queria se distanciar de mim o mais rápido possível. – Bom! Isso é bom! – Penso eu tentado me enganar.

Passei um tempo revivendo tudo que passamos neste fim de semana. Quando olhei no relógio percebi que já tinha se passado pelo menos duas horas.

- Deus! O que está havendo comigo? Tenho coisas a fazer! – Pego o celular que está dentro da bolsa sob o sofá, ao meu lado.  – Hayden? Pode falar?

- Claro! – Diz ele com sotaque inglês – Por que não podia falar quando te liguei? – Abro um sorriso.

- O seu português está cada dia melhor! Bom, eu não estava sozinha.

- E a companhia era trabalho ou lazer?

- Isso não é da sua conta. Mas de uma forma ou de outra descobri algumas coisas, inclusive porque o nosso alvo não me dá abertura. Vou tentar uma nova abordagem e dependendo de como evoluir, eu te incluo.

- Você está brincando? Preciso entrar de uma forma ou de outra. Você não pode fazer tudo sozinha, nenhum de nós pode. Não somos super-heróis. Isso não é negociável!

- Está falando como se fosse meu chefe.

- Não sou só o seu chefe! Sou seu parceiro, seu amigo. Me importo com você. Você sabe perfeitamente disso... como obteve a informação? – Respiro fundo.

Não deveria contar minha quebra de protocolo, mas se existe alguém de confiança na qual colocaria minha vida em suas mãos, essa pessoa é o Hayden. Então conto tudo.

- Você tem noção da loucura que fez?

- Sim! Estou com raiva de mim mesma. Não sei o que deu em mim.

- Eu sei! Já vi isso acontecer e tenho certeza que vai descer ladeira abaixo. Estou indo para o Brasil.

- Hayden, espere! Tudo bem, eu acho que você deve mesmo vir, mas não fale comigo deste modo! Não faça um julgamento baseado em ressentimentos, ok? Eu estava de mãos atadas. Não tive opção.

- Tudo bem. Eu me excedi, não deveria ter dito isso. Sejamos objetivos. Como vai agir daqui para frente?

- Tracei um plano baseado nas informações que adquiri, já tenho uma ideia de como cada uma das partes envolvidas vai reagir.

- Ótimo! Me conte seus planos.

Após ficar quase duas horas no telefone com Hayden eu desligo e vou para o quarto. Já escolho minhas roupas para trabalho e academia. Tenho um personagem a desenvolver, então me recuso a voltar a pensar no André. Jogo meus pensamentos por ele dentro de um baú, tranco com um cadeado bem grande, e jogo as chaves fora.

 

 

UMA SEGUNDA CHANCE

 

Na manhã de segunda-feira começo a pôr em prática meu plano. Vou à academia, faço meu treino. Retorno, tomo banho e me preparo para o início da semana. Quase passo da minha estação por estar tão concentrada nos meus planos. Ao atravessar as portas de vidro, dou de cara com a recepcionista.

- Bom dia Andréia, tudo bem?

- Tudo bem Cristina, como foi o fim de semana? O que houve com seu rosto? Me parece um pouco inchado! – Levo a mão ao rosto. Droga! Esse é o momento em que saberei se posso ou não contar com o André.

- Ela foi assaltada, assim como eu na saída do pub daqui da frente.

André responde antes que eu tenha a oportunidade de falar. Está super gato, usando um terno cinza chumbo e camisa branca sem gravata. Ele raramente usa gravatas e quando o faz identificamos rapidamente que se trata de um executivo de criação. Ele usa óculos de aro grande e estiloso, combinam muito com ele, mas ele prefere usar lentes de contato a maior parte do tempo, exatamente como agora. Costumam dizer que o óculos é um termômetro, quando ele os usa é porque está irritado, estressado ou cansado, em outras palavras, não é bom vacilar com ele nestes dias! – Hum! Ele fica tão lindo de óculos! –  Concentre-se Cristina! Me repreendo mais uma vez.

 - Nossa André! Seu rosto está muito machucado, tadinho! Vocês estavam juntos?

- Sim! Encontrei a Cristina na saída, e como imaginamos que o pessoal estivesse no pub, resolvemos ir para lá, mas não tinha ninguém quando chegamos, então desistimos e demos meia-volta, e praticamente na porta do bar fomos abordados por dois bandidinhos, eles nos agrediram gratuitamente e depois de nos roubar acabaram fugindo.

- Conte a estória direito, André! Porque você me salvou, se o olho dele está roxo desse jeito foi porque me protegeu.

- Eu não fiz nada demais. Tomar à frente de alguém mais frágil para protegê-lo é instintivo, não é mesmo?

- Não sei, André! Acho que vai da personalidade de cada um! O que sei é que você foi um verdadeiro gentleman! Obrigada mais uma vez!

Ele foi irônico, e estou devolvendo na mesma moeda, enquanto Andréia nos observa com curiosidade.

- Não foi nada, Cristina. Espero que mesmo com esse incidente o seu fim de semana tenha sido... Agradável... Tenha um bom dia! Bom dia Andréia. – E sai.

- Uau! Eu juro que vi as faíscas! Rolou algo mais? – Pergunta Andréia.

- Claro que rolou! Rolou mais umas quatro ou cinco horas de delegacia para registrar a nossa queixa, agora entendo porque as pessoas deixam para lá. É um absurdo!

- Ah, nem me fale! É assim mesmo! Uma vez fui assaltada chegando em casa, cheguei na delegacia mais ou menos uma onze da noite, e eles estavam atendendo um BO. Eu aguardei umas duas ou três horas para ser atendida, e depois ficaram comigo por um tempo infinito, cheguei em casa quase seis horas da manhã do dia seguinte! Pode uma coisa dessas?!

- Nossa! Que horror! Mas tenhamos fé! Dias melhores virão!

- Bom dia meninas. Tudo bem contigo, Cristina? – Diz Roberto observando meu rosto, mas tentando ser discreto.

- Bom dia Roberto. Sim, agora estou bem. Obrigada!

- Se precisar de algo. É só falar!

- Ok! Obrigada! Bom dia para vocês! – E saio da recepção.  Sei que a Andréia é a atual “peguete” do Roberto. Ele cada hora está com uma, mas nunca deu bola para mim. Agora eu sei o motivo.

Ao entrar na sala do atendimento percebo que meu chefe já chegou, o Caio está em sua sala com a porta aberta. Digo bom dia e entro na minha sala que fica de frente para dele. Sou uma das quatro garotas que cuidam do atendimento, e geralmente sou a primeira a chegar.

Quase uma hora depois, todas as meninas chegaram. Marisa cuida do nosso principal cliente, uma indústria alimentícia. Carol atende uma empresa de artigos esportivos e cosméticos. Amanda atende um cliente da indústria farmacêutica e eu atendo uma empresa de cimentos e uma rede de drogarias no Rio de Janeiro, além de jobs de uma construtora especialista em condomínios de luxo.

Eu e as meninas temos uma boa relação, mas não somos muito próximas, talvez porque eu sou muito reservada e a Marisa não tenha tempo. De qualquer forma, Carol e Amanda não se desgrudam, e estão sempre se ajudando, mas não têm a mesma disposição quando eu e a Marisa precisamos de ajuda, então por consequência nós nos ajudamos. Gosto da Marisa. Ela é mais madura que as outras duas. Pode-se dizer que na nossa área temos dois estilos de profissionais: As garotas mais receptivas e brincalhonas e as sérias e objetivas, ou seja, eu e a Marisa fazemos bem menos sucesso.

A Marisa tem cabelos cumpridos e castanhos, olhos azuis e traços delicados, por volta de um metro e setenta e cinco de altura, magra e se veste com muita elegância, um estilo mais clássico. Já Carol é loira de olhos verdes. Seus cabelos tem um corte curto e moderno e ela sem dúvida nenhuma é a mais fashion de todas nós, qualquer um acharia que ela trabalha na criação ao invés do atendimento. É baixinha, por volta de um metro e cinquenta e cinco, mas isso não faz com que passe despercebida. Ela sempre chama atenção para ela, seja por sua aparência ou por sua postura. E a Amanda não fica atrás, tem sempre a atenção de todos. Ela é morena, tem cabelos castanho escuro até a cintura, olhos verdes e corpo violão. Tem um estilo elegante e moderno.

Acho que sou a mais básica, com meus traços marcantes, mas detalhes comuns como olhos castanhos claros e estatura mediana de um metro e setenta e um. Estou em forma, mas não tenho super curvas ou super bumbum como é esperado das brasileiras. Meu vestuário costuma ser simples e discreto, mas estou sempre bem vestida. Só que de uma forma muito mais apagada em comparação as minhas colegas, pelo menos era assim até sexta-feira passada.

- Nossa Cristina! Adorei o seu look hoje! Esse seu vestido bicolor com esse scarpin vermelho de verniz está um arraso! Reunião importante hoje? – Me pregunta a Carol.

- Obrigada Carol! Na verdade, não! Tenho um monte de coisas para resolver dentro da agência. Só achei que estava precisando vestir algo mais adequado para uma segunda-feira! – E reviro os olhos. Ela sorri.

- Pois daqui para frente, para você, todos dias é segunda-feira. Vai deixar todos os homens loucos, o chefe bem que está precisando relaxar um pouco... – E rimos.

- Vocês são terríveis! Quero morrer amiga de vocês. Agora estou indo. Tenho que apresentar a campanha dos biscoitos, podem me agradecer porque estou levando o Caio comigo! – Diz Marisa.

- Boa sorte Má! Vai dar tudo certo! Você é a melhor! – Digo com um sorriso.

- É verdade! Você é a melhor! Depois de mim, é claro! Mas boa sorte lá – Brinca Amanda.

Mas sabemos que ali tem uma alfinetada de leve, elas implicam com a Marisa por ela cuidar da principal conta. A conta que rendeu um prêmio à agência no ano passado.

Por enquanto sou café com leite. Nenhuma delas implica comigo, talvez porque tenha ajudado as duas. Entrei na agência para cuidar da rede de farmácias, mas acabei ficando com um cliente de cada uma delas, que eram contas menores, o cimento e a construtora.

Verifico meu e-mail, e vejo que os layouts da farmácia não foram aprovados. Checo as alterações, imprimo, sinalizo as mudanças e vou para sala de criação.

- Oi Jefferson. Tudo bem? – Jefferson é um dos responsáveis pela criação das peças. Tem uma cara de mau, mas na verdade é um fofo. É muito bonito com seus cabelos pretos e olhos escuros que não permitem achar com facilidade a sua íris. Um olhar intimidador, eu diria. Mas felizmente somos quase amigos.

-  Oi Cris! Tudo bem com você? Soube o que rolou com você e o chefe. Pena que eu não estava lá. Você não teria se machucado! – Abro um sorriso.

- Ah, Jeff! Seu chefe foi bacana. Eu estaria bem pior senão fosse por ele.

- Quer dizer que ele saiu mesmo na porrada com os caras?! Não imagino ele brigando. Se não fosse pelo olho roxo eu acharia que foi conversa fiada. Ele é tão fresquinho.

- Que horror Jeff, coitado! Ele é um cara legal, sabia?! Uma ótima pessoa!

- Uau! Já entendi! A melhor forma de se ganhar o coração de uma mulher é levar uns bofetes por ela...

- Bofetes? Ah! Cala a boca! Já falou merda demais para uma segunda-feira! – Mas estou rindo, preciso levar numa boa porque senão é pior – Olha só, nosso querido Cristiano nos mandou alterações no layout do outdoor e do banner. Na verdade, ele mudou de ideia com relação a alguns conceitos. Você pode fazer isso agora? Ou está enrolado?

- Nós vamos fazer uma reunião agora, mas assim que terminar o Jefferson te liga e vocês fazem as alterações juntos. Pode ser? – André está atrás de mim e do Jefferson, sabe-se lá há quanto tempo.

- Claro André! Está ótimo, obrigada! Até mais Jeff! – E saio. Quando olho para trás, vejo que o André está falando com Jefferson, e não parece muito gentil. A cara do Jeff é uma máscara de hostilidade. AiMeuDeus!

A manhã passa rápido. Estamos com muito trabalho, e resolvo ligar para um cliente e questioná-lo sob as peças enviadas. Acabo propondo a realização de um hotsite como complemento da campanha, e ele adora. – Bingo! Era isso que eu precisava! – Mando mensagem para meu o chefe e ligo para o Roberto.

- Oi Roberto, é a Cris do atendimento, você pode falar?

- Oi Cris. Posso sim, o que houve?

- Consegui convencer o cliente de cimentos a expandir a campanha e incluir um hotsite. Quero começar a trabalhar nisso, quero fazer uma reunião contigo.

- Claro! Mas hoje está corrido. O que acha de almoçar comigo e com o André? Podemos pensar juntos sobre o formato do hotsite.

- Humm... Você quem sabe! Na verdade, a parte criativa do projeto está toda definida. Quero conversar especificamente sobre o hotsite porque eu não manjo muito disso. Estou precisando de você! – Digo melosa e de forma dúbia. Ele que entenda como quiser, e sabendo o que sei dele, sei que vai morder a isca.

- Seria muito bom... – Ele suspira – Mas creio que preciso da presença do André, as melhores ideias são sempre dele. E ele está muito empenhado neste cliente... – Ele diz de forma dúbia – Acho importante a presença dele... Soube o que houve com vocês na sexta-feira. Sinto muito, e fico feliz que o André estivesse com você. Apesar de parecer meio bravo, ele é um cara legal. Tem um bom coração, e um caráter melhor ainda.

Fico indignada – Fala sério! Ele está fazendo propagando do André para mim? Decididamente eu não faço o tipo dele! Será que terei de mudar de tática? Droga! Isso vai ser mais perigoso do que eu imaginava! Como eu tiro o André dessa? Ele está bem no meio! Droga! Droga! Droga! – Respiro fundo.

- Sim! O André é mesmo uma pessoa especial, que horas almoçamos?

- Pode ser às quatorze horas? O André está numa reunião com a equipe dele.

- Tudo bem, me avise quando estiverem saindo, e eu os aguardo na recepção.

- Fechou! Até mais!

AiMeuDeus! A cada três palavras ditas por ele, duas são André. Ou ele gosta demais deste amigo, ou não me acha nem um pouco atraente, e o usa como uma espécie de escudo. Pode ser também as duas coisas!!! Mas que droga... Certo Cristina, respire fundo e vamos lá!

As quatorze horas meu telefone toca, e cinco minutos depois estou na recepção, meu vestido chama atenção. Ele é preto e branco, com preto predominante, o desenho em branco lembra uma ampulheta. Olhando a distância parece que estou com um casaco preto em cima do vestido branco. Os sapatos vermelhos vinho completam o visual.

- Aí está ela! Algum lugar em especial? – Pergunta Roberto. Ele é um gato. Tem olhos verdes, cabelo cor de bronze, lábios cheios e um sorriso incrível. Além dos seus um metro e oitenta de altura. Costuma ganhar a mulherada quando respira, simples assim.

- Não se incomodem por minha causa! Estou invadindo o almoço de vocês, podem escolher!

- Vamos no italiano, André? O dia vai ser bravo e não sei que hora vou sair da agência hoje.

- Pode ser, vamos nessa!

Logo que chegamos ao restaurante, após fazermos os nossos pedidos, o Roberto olha para o André de forma nada discreta, e diz que precisa ir ao banheiro. Ficamos no mais completo silêncio. Um minuto depois ele não se aguenta:

- Você está atrás dele? O que ele fez? Ou melhor, o que você pensa que ele fez? – Respiro fundo e apenas nego com um balanço de cabeça, indicando que não vou entrar no assunto.  – Fala sério Cristina! Não vê que essa situação é insustentável?! Eu sei mais do que deveria. Agora preciso saber de tudo! Você me deve isso!

- Eu não lhe devo nada! E estou aqui a trabalho. Vim almoçar com vocês por conta de um job, imagino que o Roberto já lhe adiantou o assunto.

- Ah, é verdade! Uma grande coincidência, não? Um job de web após o seu espanto ao descobrir que somos amigos? Me faça um favor: Não subestime a minha inteligência!

- Que droga André! Eu vim aqui conversar sobre o job, vamos falar sobre o job?

- Direta e objetiva! Sua fama é verdadeira! – Droga! Roberto retornou e percebeu que estávamos discutindo – Devo dar mais cinco minutos a vocês? Ou posso me sentar à mesa?

- Você não está atrapalhando nada, estava discutindo um ponto sobre o hotsite. O André fica criando dificuldades para viabilização do projeto.

O André entende a minha deixa:

- Não estou criando dificuldades! Só acho que o cara que trabalha na obra não vai ficar acessando um hotsite para cadastrar códigos de barras em seu cadastro, para mais tarde transformar isso em prêmios. Agora se ele tiver uma cartela na qual ele preenche um logo, e depois nos envia isso pelo correio, assim vai rolar. Claro que estamos falando de um processo mais arcaico, mas o nosso cliente direto não tem o hábito de checar os e-mails diariamente.

- Discordo! Todos usam a internet para oferecer os seus serviços. E o maior consumidor são as empreiteiras, e não os autônomos! Portanto, o responsável pela administração de materiais vive em constantes cotações, ele vai optar pela melhor oferta, a melhor vantagem!

- Meu Deus! Vocês dois discutem como um casal! – Diz Roberto, e tanto eu quanto André ficamos desconcertados – É sério! Parecem um casal mesmo! Agora os dois me escutem: Os dois têm razão! O cimento possui estes dois nichos de consumidor. A partir do momento em que o cliente aceitou a proposta da Cris, ele abriu margem para atingirmos o público “A”, e com as ferramentas do projeto original atingimos o público “B” e “C”, conforme direcionamento da campanha. Então, que tal se nós somarmos? Vocês são ótimos, e se somarem, podem render muito mais! Acho que vocês dois precisam trabalhar juntos, definir melhor os parâmetros e adaptações do job. Depois disso a gente volta a conversar!

Merda! Ou ele me viu como uma completa incompetente, ou está bancando o cupido, ou é claro, talvez as duas coisas!

- Acho que você tem razão! – E percebo pelo cantinho do olho direito que o André estava pronto para protestar.

Após terminarmos a refeição o Roberto se retira dizendo que precisa ir a uma reunião, e que só retornará no final do dia.

- Por que você concordou com ele?

- Porque eu não tive opção. Não sei o que ele ouviu.

- O quanto isso é importante?

- Totalmente importante.

- É ele, não é? É dele que você está atrás, essa parte para mim já está clara, agora eu preciso saber o motivo. Ponha-se no meu lugar! Meu amigo de infância está sendo investigado, e eu como um ótimo amigo não digo nada porque estou apaixonado pela garota responsável pela investigação. Tem noção de como estou me sentindo?!?! – Ele cobre o rosto com as mãos.

- André? – Ponho minhas mãos em cima das suas e as removo para que ele possa ver o meu rosto – Acho que também estou me apaixonando por você! – Sinto meus olhos marejados.

Ficamos quietos, de mãos dadas, um olhando para o outro sem acrescentar mais nada. Não quero pensar no que ele disse, não quero pensar na minha confissão. – A situação está mesmo fora de controle, e o Hayden está certo. A cada passo que eu dou eu pioro ainda mais a minha situação, assim como fiz no caso de Nova Orleans. Abby, a garota com múltiplas personalidades. – Só de lembrar sinto náuseas.  Bloqueio imediatamente esse pensamento.

- Você está bem?  - Ele diz apertando os meus dedos com os seus.

- Sim. Estou bem. O que vamos fazer, André? Como vamos lidar com essa situação? – Meu celular toca. É o Hayden – Oi Hayden. Quando você chega?

- Hum! Acho que as coisas não melhoraram como você esperava. A equipe vai embarcar no jato. Precisamos só resolver algumas questões políticas, justificar ao governo brasileiro a nossa presença, mas nada demais, afinal, já sabem que você está atuando.

- Alguma previsão?

- Até o final da semana, mas acredito que quarta-feira já estaremos aí. Está tudo bem?

- A situação está se complicando. Preciso de você aqui comigo. – André solta minha mão.

- Segura as pontas porque eu estou chegando docinho. Nós falamos amanhã.

- Ok, beijo! Façam uma boa viagem. – Olho para André que me olha incrédulo.

- Você é absurda, sabia? Há dois minutos atrás você disse que acha que está se apaixonando por mim. E depois se derrete toda no telefone, bem na minha frente. Puta que pariu! Por que você está fazendo isso comigo?! Por que está brincando com os meus sentimentos?!

- Por favor, André, estamos chamando atenção, esse não é o lugar ideal para conversarmos.

- Ah é verdade! Estou “complicando a situação” para você, não é? – Ele faz aspas com a mão para indicar que ouviu o que eu dizia ao telefone com Hayden. Ele acha que ele é a complicação, mas na verdade ele é apenas... Parte dela! Uma parte bem grande!

- Não! Você está chamando atenção das pessoas. É isso que estou dizendo. Podemos conversar mais tarde? Mas por favor, não em público, pode ser? – Ele fica em silêncio me olhando com cara de poucos amigos.

- Como pode alguém te levar em um período de tempo tão curto do paraíso ao inferno? Você faz isso comigo! E sabe qual é o maior problema? Sempre que eu chego próximo a entrar no paraíso a porta é fechada na minha cara, e eu caiu direto na frigideira do inferno, como num desenho animado! – Com essa eu não resisto e começo a rir.

- Você é realmente diretor de criação, não é? Juro que lembrei de um daqueles desenhos do pica-pau! Onde ele cai na frigideira seja literal ou do inferno.

- É isso aí! Eu sou o pica-pau e você é o jacaré malandro que tenta levar o pica-pau no bico. – Ele diz exacerbado, mas também rindo.

- É, mas ele nunca consegue! Ele sempre se dá mal. Acho que eu sou mesmo o jacaré! – Abro um sorriso de desculpas.

- Talvez. Conversamos aonde? Na sua casa?

- Sim, acho melhor.

- E o seu pai?

- Ele não estará, lembra que ele ia pra Brasília e de lá para Los Angeles? Tenho pelo menos uns vinte dias de folga.

- Um dia você ainda vai me explicar esse lance sinistro com seu pai.

- Prometo que vou. Mas preciso me preparar para isso. Preciso de um pouco mais de equilíbrio.

- Tudo bem, eu posso esperar. Só tem uma coisa que você precisa me responder agora.

- O que é?

- Você e esse cara. O tal de Hayden! Vocês são namorados?! – Solto um suspiro pesaroso.

- O Hayden é minha família. Ele já foi meu namorado, meu pai, meu irmão, meu tudo. Eu só tenho três pessoas na vida: Minha Amiga Beatriz, seu marido e meu amigo Luciano e o Hayden. E “Ele” é intocável para mim, entende? Nosso amor é incondicional, mas também é casto. Se tornou casto! Não somos mais um casal há mais de dois anos.

- Só mais uma pergunta: Esse sentimento é recíproco? Ou o amor incondicional e casto vem só da sua parte?

- Vem de nós! Eu e o Hayden. Eu o magoei sem querer, mas salvei sua vida e depois ele salvou a minha. Então concluímos que não podíamos viver um sem o outro, mas isso não significava que tínhamos que estar juntos como casal. Fim da estória, não falo mais sobre isso!

- Mas por que não? – Ele abre um sorriso tímido, simplesmente maravilhoso, e eu retribuo rindo como uma boba.

- Bom, primeiro precisamos voltar para agência, segundo, não vou ficar falando sobre meu ex para você. Isso é uma regra, não se fala de ex-namorado para o... – E não termino a frase.

- Para o? Termine a frase!

- Para ... outros homens! Agora vamos pagar a contar e voltar ao trabalho.

- Estamos discutindo sobre trabalho, lembra? O cliente do cimento? Você está comigo, não precisa se preocupar, se quiser eu posso avisar ao Caio que estamos fora da agência definindo detalhes para o hotsite do cliente. Vamos para sua casa. Vou pegar o meu carro. – Eu abro e fecho a boca como um peixe, mas não digo nada.

Chegando na minha casa entramos e percebo Irineu olhando para mim com cara de quem ainda não acordou e acha que está sonhando.

- Oi meu galã de novela! Tudo bem contigo, meu amor? Mamãe estava com saudades desse menino bonito! – E coloco ele no meu colo, ele aceita o carinho por um tempo e quando se cansa se estica todo, eu o ponho no chão. – Aposto que a gorduchinha da sua irmã está dormindo debaixo das cobertas na minha cama. – André está observando a cena com um sorriso.

- Ele é lindo! Só tinha visto a gatinha, mas ele também é lindo, são idênticos, não?

- São sim! São irmãozinhos, muito carinhosos comigo e entre eles. Fazem parte da minha família. Eu tenho cinco vidas importantes na minha vida: A Bia, o Luciano, o Hayden, a Nair e o Irineu.

- E o seu pai não é importante? – Minha expressão sorridente se desfaz.

- Você é mais importante para mim do que ele. E por favor, eu não estou pronta para falar sobre isso!

- Tudo bem! Vamos falar sobre você. Preciso saber, e preciso saber agora. O que você está investigando? E qual é a participação do Roberto nesta estória toda? – Respiro fundo.

Não tenho para onde fugir. Eu tenho que contar tudo a ele.

- Sente-se André, a estória é longa e eu não quero que você caia duro.

Ele se senta e parece tão tenso quanto eu.

 

 

 

 

A HORA DA VERDADE

 

- Já te contei que me tornei agente internacional, mas isso é porque estou no Brasil. Eu sou do FBI. Trabalho como apoio na UAC, Unidade de Análise Comportamental. Eu não traço perfis. Obviamente eu tenho conhecimento avançado no assunto, mas essa é a função deles, não sou perfiladora, o Hayden é! Meu ponto forte é o trabalho de campo, por assim dizer. Nem sempre temos um final feliz nas investigações. Às vezes não conseguimos impedir uma tragédia, mas tivemos sucesso no último caso. Conseguimos prender uma quadrilha especializada em tráfico de pessoas, para ser mais clara, tráfico de crianças para uma clientela especial... os pedófilos...

Aguardo uma reação. Ele está petrificado e mais branco que um fantasma. Eu suspiro.

- Tudo bem, André? Já ouviu o bastante? A estória é pesada!

- Continue... quero ouvir até o fim.

- Ok! Como disse, eles tinham uma clientela muito grande. Através dos seus registros encontramos uma pista sobre uma criança que estava desaparecida há apenas vinte e quatro horas. De acordo com o modo que eles atuam, a criança ainda não foi vendida, ela está em período de exibição para os possíveis compradores. É uma forma de valorizar a mercadoria e aumentar o seu preço. Quando existe muita procura eles podem até protelar, sempre para elevar o preço. Estamos correndo contra o tempo.

Ele suspira mais uma vez.

- Como vocês descobriram tudo isso? E como chegaram até aqui?

- Por incrível que pareça, eles tinham tudo registrado em seus HDs, tinha um cronograma especificando a criança, o país, estado, e o gerente da transação.

André levanta e caminha na minha direção elevando a voz a cada pergunta. Está ficando histérico.

- Espera aí Cristina! Não me diga que vocês acham que o Roberto está envolvido nisso? Vocês acham que ele é o tal gerente? É o nome dele que aparece neste documento? Você não vê que isso é insano? Não faz sentido...

- Calma, André! Sente-se. Não é tão simples assim. Ainda tem muita coisa que você precisa saber. Sente-se, por favor!

- É muita loucura, Cris! É maluco demais! Parece coisa de filme, eu juro que daqui a pouco eu começo a procurar as câmeras escondidas, só pode ser uma pegadinha!

- Eu sei! É louco, é insano, e principalmente, é cruel! É desumano! Mas ainda tem mais.

- Mais? Certo! Tem alguma coisa forte para beber? Acho que preciso de uma bebida.

- Eu vou pegar um conhaque para nós.

- Você gosta de conhaque?

- Não! Mas neste momento eu também preciso.

Após retornar da cozinha com nossas taças, volto a me sentar na poltrona vermelha, que fica de frente para o sofá branco de dois lugares, no qual o André está sentado com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça abaixada, com o rosto escondido entre as mãos. Coloco as taças na mesa de centro e toco seu braço.

- André? Eu trouxe o conhaque. – Entrego a ele, e ambos bebemos um gole generoso do liquido encorpado e de cor âmbar. Não brindamos, não há o que brindar. – Você está bem? Talvez devêssemos encerrar esse assunto agora mesmo. Você já sabe demais.

- Não. Eu quero ouvir tudo! Até o final.

- Tudo bem. – E suspiro – Eles são organizados e arrogantes mantendo o registro de tudo. É uma prova contra eles, mas não são de todo estúpidos. Nos registros não consta nenhum endereço físico ou nomes verdadeiros. Estamos usando o que temos para tentar descobrir mais.

- Então vocês não têm nenhuma prova contra ele? Por que desconfiam do Roberto?

- Para te responder essa pergunta preciso voltar um pouco no tempo. Lembra quando me disse que conheceu o Roberto na terceira série? Que havia acontecido alguma tragédia? Eu sei qual é a tragédia, o pai do Roberto foi assassinado. Mas não foi ao acaso. A morte dele foi encomendada. O Roberto vem de uma família muito rica, mas seu pai era péssimo nos negócios e dilapidou a fortuna, eles viviam de aparências e pequenos golpes. Faziam parte da alta sociedade e estavam envolvidos em todos os jogos sujos e promíscuos, mas quando veio a crise, todos lhes deram as costas. O pai do Roberto não pensou duas vezes, usou as informações que possuía para chantagear e impor sua presença neste grupo seleto, o resultado é que alguém não aceitou a chantagem e arquitetou um plano: Forjar um assalto e eliminar o senhor Maximiano, pai do Roberto.

André toma mais um longo gole de seu conhaque.

- Isso não prova nada!

- Ainda não terminei. Você conhece a trajetória de vida e carreira do Roberto. Agora me explica uma coisa: Como ele foi promovido em apenas três meses de empresa de estagiário à gerente?

- Isso é crime?

- Não! Crime não é! Mas é no mínimo suspeito que ele decole profissionalmente tão rápido, e justo na empresa pertencente ao Mauricio, o filho do homem que mandou matar o pai dele.

Faço uma pausa para que André pense no que acabou de ouvir.

- Então você está me dizendo que provavelmente o Roberto chantageou o senhor Mauricio para conseguir a promoção? – Assinto confirmando suas palavras. – Vamos lá... levando essa loucura em conta. O que isso tem a ver com seu caso?

- Lembra que eu disse de pequenos rastros? Nós colhemos as migalhas. Com base no cronograma que direciona a frequência de transações no Brasil, concluímos que o envolvido não poderia ficar o tempo todo como pessoa física transitando com crianças diferentes daqui para lá. Isso levantaria suspeitas. Ele precisaria de uma fachada profissional. Então procuramos empresas especializadas em turismo infantil e encontramos algumas poucas. A partir daí filtramos as informações, pegamos as datas dos cronogramas e comparamos com as viagens dessas empresas. Esse não é o tipo de turismo que se tem um voo por dia. Analisando os dados, e percebemos que uma das empresas se encaixava no perfil por dois motivos. Primeiro: As datas batiam com as datas dos cronogramas. Segundo: A empresa não usa voo comercial. Ela possui um jatinho pertencente a uma das empresas do seu grupo. O grupo Premium! – Faço nova pausa para que o André some o que estou lhe dizendo. – André, raciocina comigo! Qual a chance de uma empresa que visa lucro mandar um jatinho para o outro lado do planeta com apenas dois ou três passageiros?! Pelo conforto dos seus clientes?! – Digo erguendo uma sobrancelha – Eles são os responsáveis em transportar as crianças, e como atuam dentro dos aeroportos, já tem uma relação com os funcionários locais. Com a polícia. É perfeito! Pesquisamos a reputação da empresa: Pessoas simpáticas e carismáticas, adoradas por todos. Essa é a imagem que a Diversão Premium passa a todos nos aeroportos. Detalhe: A tripulação é composta por apenas três pessoas: Piloto, co-piloto e aeromoça. A administração se resume a uma pessoa que cuida do RH, e o contador que cuida de todas as empresas do grupo. Não acha, no mínimo, incomum? Estranho?! Uma empresa pertencente ao grupo Premium tendo apenas cinco funcionários?

- Deus! Mas eu já fiz uma campanha para essa empresa do grupo! Por que eles se dariam ao trabalha?! E como conseguem controlar as crianças que estão sendo sequestradas diante das outras crianças?

- Simples! Seus clientes não são verdadeiros, é tudo manipulado. Descobrimos que as identidades de algumas destas crianças embarcadas eram de crianças que já estavam mortas. Controlar uma criança não é difícil, André! Basta lhes ameaçar. Ameaçar aqueles que ela ama, as mais rebeldes podem ser drogadas, e assim vai parecer que a criança está sonolenta. Existe uma serie de artifícios usados por essas quadrilhas.

- Deus! Meu Deus! Vocês já têm provas contra ele. Por que não prendeu o Mauricio ainda?

- Pelo garoto sequestrado. Se prendermos o Mauricio sem ter resgatado a criança, podemos condenar ela à morte. Ela pode estar sob os cuidados de alguém da sua confiança, ou, caso ele seja muito desconfiado, só ele conhece o cativeiro. Nesse caso, ele jamais vai oferecer provas contra ele. Vai deixar que a criança morra. É a forma de vingança contra nós, ninguém ganha. É o que eles fazem!

- Se ele não vai oferecer a informação que vocês precisam, como esperam consegui-la? Não dá para se tornar amigo confidente dele, não em tão pouco tempo. O que vocês pretendem fazer?

- Entrei na Premium com a função de me aproximar do Roberto e descobrir o que ele sabe. Tenho minhas dúvidas de que esse é o único negócio escuso do senhor Mauricio. Estamos correndo contra o tempo.

E o silêncio se instala na sala. Alguns minutos depois vejo André esvaziando a sua taça.

- Quer mais um pouco?

- Sim.

- Eu vou pegar.

E saio da sala com a taça do André, acho que ele precisa de alguns minutos a sós para digerir tudo que ouviu.

Ao retornar à sala, encontro ele na mesma posição de antes: Os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça abaixada, com rosto escondido entre as mãos. Desta vez eu não o toco.

- André? Seu conhaque.

Ele pega a taça sem olhar para o meu rosto. Não diz nada. Parece me evitar, e eu aguardo. Não vou pressioná-lo. É muita informação e informação ruim. Ficamos em silêncio por muito tempo. Até sermos interrompido pelo meu celular:

- Alô?

- Cris? Pode falar? É a Amanda.

- Claro Amanda, o que houve?

- Seu cliente da rede de drogarias ligou, o Cristiano. Ele disse que ainda não recebeu o novo layout do outdoor e nem o do banner. Precisa de ajuda?

- Hum... eu deixei as mudanças com o Jefferson, poderia me fazer a gentileza de pedir para que ele as faça, e depois me mande?

- Vou falar com ele agora mesmo!

- Obrigada Amanda! Valeu!

- Que isso! Precisando, é só falar! Você ainda volta para cá? Sabe como é, o Caio!

- Não, eu não volto não. Estou trabalhando no desenvolvimento estratégico do hotsite do cliente de cimentos com o André, o Caio já foi informado.

- Hum!! Mandou bem, garota! Agarra o gato! Mas cuida dele com carinho! – Não posso evitar de sorrir.

- Ah, claro! Até parece! Obrigada Amanda, e agora tchau!

Estou brincando, e ela sabe. Volto o meu olhar para o André que me encara. Ele me parece um pouco bêbado. Percebo que ele bebeu todo o seu conhaque, e o meu também.

- Tem mais conhaque?

- Não! O que posso fazer, André? Sei que está angustiado com todas essas revelações. O que posso fazer para te ajudar?

- Me ajudar? Não sou eu que preciso da sua ajuda. Qual o nome da criança?

- John. Ele se chama John, tem apenas oito anos. Estava brincando na frente de casa quando a mãe o viu pela última vez.

Ele suspira.

- Concentre sua ajuda no John.

Ele levanta e anda em direção a porta.

- Onde você vai?

- Você disse que não tem mais conhaque, e eu ainda não bebi o suficiente. Então vou sair atrás de um bar.

Olho para o relógio da sala. São cinco horas da tarde.

- André, por favor, fique aqui. Ainda tem bastante conhaque para você.

- Agora tem conhaque?

- Agora tem conhaque! – Levanto e vou até a cozinha, pego a garrafa e retorno com ela em mãos. Ele continua parado no mesmo lugar – Se precisa beber mais, então beba. Mas aqui! Preciso saber como você está.

- Mas que inferno! Por quê?!

- Porque agora que você sabe, a sua vida corre risco. Por isso não queria te contar! Agora eu preciso garantir a sua segurança... faz o seguinte: Senta, bebe, xinga, esbraveja. Preciso que você ponha para fora o que está sentindo. Você está envolvido até o pescoço!

Ele retorna para dentro da sala, pega a garrafa e vira direto do gargalo. Já vi que a noite vai ser longa. Peço licença para ir ao quarto, quero colocar uma roupa mais confortável.

Encontro a Nair dormindo na minha cama, em baixo das cobertas. Vou até lá, tiros as cobertas e deito minha cabeça em seu corpo, ela mia reclamando que interrompi seu sono de beleza. Eu sorrio e lhe dou um beijo. Ponho as cobertas de volta em cima dela, e ela volta a dormir como se nunca tivesse sido incomodada. Resolvo colocar uma calça jeans escura, regata preta e meu par de sapatilhas bicolor, laranja na frente e bege nos calcanhares.

Volto a sala e percebo que o André já está em outra dimensão, faltam dois dedos para que ele mate a garrafa que eu tinha aberto, ele tomou quase tudo. Espero não precisar levá-lo ao hospital por coma alcoólico. Ao me ver ele solta um sorriso frouxo. Só falta começar a falar mole!

- Você voltou! Pensei que... teria que te buuuuscar no quarto.

Bingo! – Penso comigo.

- Mas aí... eu lembrei... você uma hora quer... depoisss não quer mais. Eu tenho que me afasssstar, mas preciso estar por perto... isssso tudo é muuuito teoria da conssspiração, você não acha? Não é posssível...

Ele pega a garrafa, e a vira, e eu me contorço para não a tirar das suas mãos. – Ele vai passar mal!

Quando termina de esvaziar a garrafa ele a coloca sobre a mesa e fica olhando, suspira e abaixa a cabeça, pondo o rosto entre as mãos. – Droga! Ele vai mesmo passar mal!

- André?! Vem comigo para o quarto. Você precisa deitar e descansar um pouco.

- Tá rodando tuuudo... – Diz com voz pastosa. – Achooo que... eu... não vou conseguir...

- Vai sim! Eu ajudo você.

Envolvo sua cintura com meu braço esquerdo, e guio seus passos, ele está mal mesmo, deixo ele no mesmo quarto que ele usou no fim de semana. – Pelo menos por algumas horas. – Como ele deitou em cima das cobertas, pego outras para cobri-lo. O tempo está quente, então pego apenas lençóis leves. Quando volto ele já está dormindo. Sua vida virou de ponta cabeça por causa de um chopp! E o inegável é que sou responsável por isso.

Algumas horas depois, quando me convenço que ele está bem e não passará mais mal, resolvo sair do quarto. Deixo sua porta aberta, assim como a minha.

Preciso checar meus e-mails, e repensar como me aproximar do Roberto. Isso me aflige porque o André está bem no meio, e agora que sabe sobre a investigação, pode pôr tudo a perder, ou pior, sair machucado por tentar ajudar. Estou literalmente entre a cruz e a espada! – Merda, merda, merda!

Ouço barulho, levanto e vou no quarto do André. Ele está agitado, como se estivesse tendo um pesadelo:

- Não... não... não! Cara, diz que é mentira! Diz que você não é esse monstro! Você não tem nada a ver com isso... – Ele diz enquanto dorme, e parece se acalmar aos poucos – Crianças? Como alguém pode ter coragem? – E começa a chorar.

Me aproximo e coloco a mão em seu braço, começo a fazer movimento de sobe e desce para tentar acordá-lo com calma:

- André? – Digo baixinho – Está tudo bem. Vai ficar tudo bem. – E ele acorda com os olhos úmidos. – Está tudo bem. Eu estou aqui com você. – Sento na cama ao seu lado.

Ele se move e põe a cabeça em meu colo, me puxa para ficar com o corpo todo em cima da cama e abraça minhas pernas como se fossem o ursinho de pelúcia de uma criança pequena. Ele parece desolado. Não diz nada, mas sinto suas lágrimas encharcando meu jeans, então começo a lhe fazer cafuné, e assim ficamos, até que percebo que ele pegou no sono de novo.

Quando ele está mais tranquilo e relaxado, soltando as minhas pernas, tiro sua cabeça do meu colo e saio devagar para não o acordar.

Resolvo preparar algo para ele comer, já são dez horas da noite. Pego uma garrafa de água e outra de suco natural de laranja. Estão bem geladas, ótimo! Ele vai precisar disso. Preparo alguns sanduíches de peito de peru com queijo branco e rúcula. Comida leve cai melhor. Retorno ao quarto com a bandeja e vejo que ainda está dormindo.

Preciso conversar com o Hayden. Vou ao meu quarto, e pego o celular:

- Oi! Pode falar?!

- Claro linda! Sua voz não me parece boa. Quero ver você, liga o computador. – Dois minutos depois – O que houve, Cris?!

- O que houve é que você tinha razão. Eu fiz besteira. Ter contado parte dos fatos ao André foi uma grande burrada, tão grande que não tive opção, senão a de contar tudo!

- Você o quê? Está louca? Isso vai comprometer a sua carreira! Pode comprometer o caso, e põe a vida desse carinha em risco!

- Eu sei Hayden! Por isso estou desesperada, mas senão tivesse contado a ele... Da forma que estava perturbado, ia começar a procurar informações por conta própria e isso poderia colocá-lo em risco...

- Para agora, Cristina! Para!

E me calo. Mais pela surpresa que pôr obediência à sua ordem.

- Agora vamos por parte. Primeiro: Nosso objetivo, seu objetivo é encontrar pistas que nos leve ao cativeiro da criança sequestrada, concentre-se nisso porque senão conseguirmos fazer isso rápido, teremos que encontrar essa criança nas mãos do seu comprador, do seu monstro particular. E aí, mesmo que a gente encontre o John, não o salvamos! Segundo: O que está feito, está feito! Ele sabe demais, e por causa disso terá que nos ajudar. Você disse que ele é amigo íntimo do Roberto, então ele é a pessoa que precisamos para arrancar informações do cara, e chegar a criança. Temos que começar a agir imediatamente. Eu estou chegando. Vou me instalar dentro da Premium para garantir a integridade do seu namoradinho... – Ignoro a sua provocação, existem questões mais importantes.

- Não acho que ele possa nos ajudar! Ele está mal. Mal mesmo! Está horrorizado com tudo. Acho sinceramente que ele vai desaparecer, fugir, sei lá! Não acho que ele consiga lidar com a situação agora, ele precisa de tempo!

- O John não tem tempo, Cristina! Lembra? Ele vem em primeiro lugar! Terceiro: Para com esse complexo de Clark Kent! Você não deveria ter contato tudo ao cara, mas agora que contou ele vai ter que arcar com as consequências também. Tenho certeza que você não saiu puxando ele pela mão dizendo que queria lhe contar um segredo que nada tinha a ver com ele. Você o alertou, se ele não quis ouvir, o azar foi dele.

- Não acho certo envolvê-lo, ele é um civil! E como você entrará na Premium?

- Bom, como você contou tudo a um civil, eu deveria afastá-la do caso! Mas não farei, em vez disso, serei prático e usarei as ferramentas postas à mesa! Como entrarei na Premium? Simples. O André vai me contratar para trabalhar com ele. Afinal, ele é o chefe, certo?! Aliás, que falta de ética a sua! Saindo com o chefe!

- Não seria a primeira vez, Hayden! E ele não é o “meu chefe”... Agora, falando sério, você não pode colocar ele nisso! É muito arriscado...

- Por que não? – André entra no quarto vestido com sua calça social e a camiseta que deixei sobre a poltrona.

- Há quanto tempo você está aí?

- Desde que descobri que sou o assunto da conversa. Me responde. Por que eu não posso ajudar? Ele tem razão, você me avisou, eu insisti, te coloquei contra parede. E eu não vou, abre aspas: “desaparecer, fugir, sei lá!”... Se uma barbaridade dessa está acontecendo bem debaixo do meu nariz, não quero ficar de braços cruzados. Eu quero ajudar!

- Cristina? Pede para o cara entrar no campo de visão da câmera? Quero conhecê-lo, gostei dele! – Levanto da cadeira e ofereço ao André, que toma mais um gole de suco enquanto senta – Oi André, eu sou o Hayden. Sei que não preciso me apresentar. A Cris já deve ter falado ao meu respeito!

- Pois é! Acredito que a recíproca é verdadeira! Eu poderia dizer que é um prazer conhecê-lo, mas não seria verdade!

- Olha, com o que você descobriu e com a ressaca que parece estar, eu ficaria preocupado se o seu estado de espírito fosse diferente. Eu estou chegando até o final desta semana, aí colocaremos isso em prática, digo sobre a sua participação nas investigações, o importante agora é você aproximar a Cristina do Roberto. Use o namorinho de vocês, se vocês oferecem o lado pessoal, fica mais espontâneo abordar o pessoal... E Cristina? Pelo que vi, ele não vai quebrar! Não é um cristal delicado...

Ignoro a provocação.

- Hayden?! A Bia virá com você?!

- Precisa da Bia? – Ele tenta parecer indiferente, mas eu o conheço como ninguém. Sei que ficou magoado. Mas ambos ignoramos essa questão. – Vou ver se consigo levá-los comigo.

- Obrigada! – Desta vez não tento me justificar. Preciso demais da minha melhor amiga.

- Se cuide Cristina! E você também André! Fiquem bem e me tragam boas notícias.

E assim encerro a conexão e desligo o computador.

- Quem são as pessoas que ele vai tentar trazer? Ele não parecia muito feliz.

- É a minha amiga Beatriz e o Luciano, marido dela. Na verdade, somos todos amigos, mas o Hayden e a Bia às vezes se estranham. São pessoas de personalidade forte, às vezes são um pouco difíceis, mas ainda assim, são as melhores pessoas que já conheci! Todos os três! Luciano também é incrível, mas é o inverso de ambos em temperamento. Acho que ele é o melhor de nós quatro!

- Pelo seu sorriso já acredito nisso!

- E como você está? Está tão abatido, vamos para o seu quarto, precisa beber mais líquido e comer alguma coisa.

Ele me estende a mão e vamos de mãos dadas até seu quarto.

- Vamos, Cris. Temos muita coisa para conversar! Obrigado por cuidar de mim!

- Você ainda não está bem. Descanse um pouco mais, e depois a gente conversa. Que tal?

- Agora, Cris! O tempo está passando!

- Ok! Que bom que tomou o suco. Vou pegar mais. E você nem tocou nos sanduíches! Precisa se alimentar. Eu já volto. Aí sim conversamos. – Saio do quarto.

Estou a mil. Pensei que seria expulsa do FBI imediatamente. Mas isso ainda pode acontecer. Provavelmente acontecerá após o termino do caso. Eu conheço o Hayden, ele não vai permitir que nada nos tire do foco, mas depois tomará todas as decisões devidas. Apesar de termos começado juntos, ele se tornou meu superior. Tem muito mais talento e sangue frio para tudo isso. Quando paro para analisar minha participação em tudo que vivemos, só consigo me ver como uma sobrevivente. Alguém que consegue escapar do que parece inevitável, mas o Hayden não. Ele é muito mais que isso. Para mim ele é mesmo um herói, tenho muito orgulho dele!

Volto ao quarto do André, ele está bebendo água.

- Que tal um pouco mais de conhaque? Acho que tenho outra garrafa...

- Muito engraçada! Não, obrigado! Estou encarando a minha ressaca moral e literal! Está de bom tamanho.

- Ótimo! Porque trouxe mais suco de laranja. Tente comer um sanduíche. Por favor?

- Não dá! Meu estômago ainda está se revirando por causa da bebida, e por causa das coisas que você me contou. – Ficamos em silêncio. – Sabe Cris, eu realmente fiquei horrorizado com tudo que você me contou, mas fiquei principalmente decepcionado com relação às pessoas. Como posso voltar a acreditar nas pessoas depois disso? Eu nem sei dizer se decepcionado é a palavra adequada para descrever o que eu sinto. Não consigo encontrar nenhuma palavra que seja forte suficiente para descrever o assombro, a repulsa que eu sinto por isso. Admiro demais a força de vocês para lidar com isso!

- André, eu não tenho essa força! Mas eu tenho que ser forte! A vida às vezes nos força a ultrapassar os nossos limites, e a gente vai levando!

- Às vezes eu acho que no pouco tempo que te conheço, eu te enxergo melhor que você mesma. A sua realidade é muito pesada! O que você sabe e faz para esclarecer um caso? Muita gente não conseguiria nem mesmo sair da cama.

- Mas não sou forte. Já fiz grandes besteiras por isso. Sinceramente não sei por que ainda estou no FBI!

- Provavelmente ainda está na FBI porque está errada. Não sei do que você está falando. Mas eu posso te dizer uma coisa: O ser humano erra, falha, é inevitável! Você não está acima disso, nenhum de nós está! É isso que nos mantém humanos.

- Não é um grande consolo!

- Não estou tentando te consolar!! – E o silêncio domina o quarto. – Desculpe! Sei que fui grosseiro. Mas você realmente tem dificuldades em ouvir um elogio. Só queria que entendesse que te admiro ainda mais. Não conheço nenhuma mulher capaz de lidar com uma situação próxima disso... Como vamos agir?

- Como “vamos” agir? Você não espera que eu dê ouvidos ao Hayden. Espera?

- Bom, eu acho que sim porque não temos tempo. Ainda dando ouvidos ao Hayden, como podemos usar o nosso “namorinho” para atrair o Roberto para nós?

Ele tenta esconder o sorriso e falha miseravelmente.

- Droga! – Fico um tempo em silêncio. – Tem razão! Eu não queria, mas é inevitável. Agora precisamos analisar... não sei como vamos usar um suposto namoro para atrair o Roberto. Como é a relação de vocês?! Algumas mulheres trocam confidências e pedem conselhos as amigas. Vocês são assim?!

- Só para esclarecer: Não somos mulheres e amigas! Mas sim, sempre falamos sobre nossas conquistas, ou pelo menos falávamos... – Ele parece sombrio. Então, retorna ao assunto. – Acho que posso fazer isso! Mas preciso ter uma estória. Quando o lance entre nós começou, em que pé está, e as questões que me levam a pedir conselho a um amigo. E aí? A especialista é você.

- Certo! Deixe-me pensar, o que acha de...

E assim damos início a um plano. Vamos fazer basicamente aquilo que o Hayden disse, nos aproximar usando um suposto relacionamento conturbado entre nós. Passamos algumas horas criando uma linda estória de amor, até que percebemos que são quase meia noite. Temos que dormir porque amanhã ainda é terça-feira, e precisamos evoluir no caso. O John precisa de nós.

- André, você vai ter que trabalhar com a mesma roupa, certo? Já coloquei sua camisa para lavar, essa hora sei que já está pronta, mas se quiser lavar algo mais... posso colocar na máquina de lava e seca.

- Não vou te dar a minha cueca! O pijama está no mesmo lugar que deixei? Ou você já colocou para lavar?

- Eu não pedi a sua cueca, bobão! Isso seria no mínimo estranho! Não vai acontecer... O pijama já foi lavado. Está no mesmo lugar que você encontrou da primeira vez. Vou deixá-lo à vontade.

- Não precisa. Somos namorados, lembra? Não precisa ter esse pudor.

- Não somos namorados de verdade, André! E que nojo!

- Agora você tem nojo de mim? Não parecia, sabia?

- Você vai usar a mesma cueca! Isso é muito nojento!

- Não idiota! Eu não vou! Tenho troca de roupa limpa na bolsa da academia. Infelizmente não ando com um terno reserva. Está no porta-malas, você pega para mim enquanto entro no banho?

- Tudo bem. Onde estão as chaves?

Quando retorno ainda ouço o barulho do chuveiro. Fico imaginando o André em toda sua glória no meu banheiro. Sinceramente, preciso tomar um banho, de preferência bem frio!

Vou para meu quarto e quando estou só de roupão ouço um toque abafado na porta. Maldição! Só pode ser o próprio Lúcifer a plena uma hora da madrugada. – Está adiantado! – Quero gritar! Abro a porta, e bingo! Lá está o André só com a toalha em volta da cintura. Faço minha melhor cara de poker:

- Oi, precisa de alguma coisa?

- Sim! Você!

Ah Merda! Por que ele é tão direto? E por que parece ainda mais lindo quando faz isso?!

- André, estou indo tomar um banho. Já são uma hora. Podemos deixar isso para depois? Já chega de confusão, você não acha?

- Você é muito frustrante, alguém já lhe disse isso?

- Na verdade, sim! Acho que você já se recuperou totalmente! Boa noite André.

Fecho a porta, mas a minha vontade é de escancará-la e me jogar em seus braços, mas me contenho. Foco, Cristina! Mantenha o foco! Não é hora para casinhos e paixonites. Você deve estar carente! Por isso está assim!

Fico um bom tempo no chuveiro. Sei que estou tentando enganar a mim mesma, afinal, deixei a porta do quarto e do banheiro encostadas, como ele já fez comigo. Mas ele já bateu aqui hoje e recebeu um não. Não vai tentar de novo. O orgulho não vai permitir. Mesmo com tudo a mil. – Incluindo meus hormônios nessa contagem. – Quando deito na cama adormeço quase que de imediato. O cansaço físico e emocional cobra o seu preço.

As três horas acordo com o familiar zumbido e as lágrimas, mas quando sinto os braços do André me consolando, algo muda. Aquele desamparo, aquela solidão não estão mais ali, eu me sinto confortada e segura. Algo que não sinto há anos.

- Me desculpe! – Consigo falar com um fio de voz – Eu sinto muito!

- Está tudo bem, Cris. Se concentre em se acalmar. Seja o que for, já passou. Eu estou aqui com você.

- Dorme aqui comigo. Por favor?

- Tudo bem. Abre espaço para mim.

E assim eu levo quase duas horas para dormir de novo, estou muito consciente do seu corpo junto ao meu. O modo como sua mão grande segura minha cintura me deixa eufórica, estou com muito calor. – Mas que merda! Tô parecendo a droga de uma adolescente que dorme com o primeiro namorado pela primeira vez! – Mas o fato é que a presença do André me perturba, e sei que causo o mesmo efeito sobre ele. Posso sentir o efeito que causo sobre ele, mas depois de algum tempo a minha pulsação se acalma e acabo pegando no sono.

Quando acordo, tenho a sensação de déjà vu. Estamos iguais a última vez. Dormimos de conchinha. O braço esquerdo que está junto a cama me segura pela cintura e o direito está em meu peito por baixo da camiseta. Tudo que consigo fazer é me aconchegar mais a ele. Poderia passar horas com ele assim. Mas ele desperta e eu espero a sua reação. A qualquer momento ele deve pular da cama.

- Bom dia Linda – Ele diz aproximando a boca do meu ouvido enquanto me aperta. Não resisto e abro um sorriso.

- Bom dia Gollum! – Ele dá uma gargalhada gostosa de se ouvir e me vira para ele.

- Por que Gollum?

- My precious... tem horas que você parece me adorar, e em outros momentos parece me odiar! Provavelmente a culpa é minha, mas não deixa de ser uma montanha russa.

- Bom. O que posso dizer em minha defesa? Você sabe ser irritante! Mas também sabe ser doce. Acho que já me ferrei, Cris. Não consigo mais escapar. – Ele ergue o corpo apoiando o cotovelo esquerdo na cama e me olha com sorriso bobo no rosto. – Deixe-me pensar... acho que vou apelidar você de Dobby! – E é a minha vez de gargalhar.

- Eu adoro o Dobby! Mas por quê?

- Porque você é dedicada! Você se doa tanto que deixa sua vida de lado. Você é o tipo de pessoa que põe a própria vida em risco se isso ajudar alguém, como Dobby fez para salvar Harry Potter e seus amigos! – Ele diz com um sorriso doce.

- E você gosta de Harry Potter? – Pergunto para mudar o rumo da conversa.

Sinto um nó se formando na garganta, e não quero que ele perceba. Vai estragar o clima gostoso entre nós. Além de me expor desnecessariamente.

- Comecei a assistir por causa dos meus sobrinhos. Mas aprendi a gostar. Acho a estória muito boa. A moral da estória é semelhante ao Senhor dos Anéis, mas é melhor! Pelo menos eu achei o final melhor.

- É, eu também. Não conheço muitas pessoas da nossa idade que pense isso, ou melhor, que gostem disso... que horas são? – Dou um pulo da cama – AiMeuDeus! São quase nove horas! Perdi a hora na academia, e ainda vou chegar atrasada na agência.

- Cris, relaxa! Ontem quando mandei a mensagem que estava trabalhando com você na campanha da empresa de cimentos, eu disse que iríamos voltar ao trabalho apenas após o almoço de hoje.

- Por que fez isso?

- Porque eu quis! Mandei um e-mail para o Roberto de madrugada marcando um almoço. Vamos fingir que estamos tentando disfarçar nossa relação, e quando voltarmos para a agência, eu conto para ele, como combinamos.

- Tudo bem. Precisamos de informações urgentes!

- Vamos obter. Vou ter que falar algumas idiotices... olha... depois que eu contar a ele sobre nós, temos que agir como um casal apaixonado, então você precisa sair da defensiva, ok?

- Não se preocupe! Eu sei representar quando é necessário. Já fiz isso muitas vezes!

- Já representou alguma vez comigo? – Faz cara de espanto fingido – Seria nessa noite depois que acordou do pesadelo? Ou quando acordou hoje de manhã?

- Ah, infelizmente eu não consigo representar para você. Até uma coisa ridícula como fingir que estou dormindo, eu sou desmascarada! – Ele abre um grande sorriso.

- Então eu estava certo! Você também não estava dormindo! E agora de manhã? Você também estava acordada? Eu sabia! Acordei faz mais de uma hora e estava esperando que você “acordasse”, mas não resisti a tentação de “despertar” te abraçando um pouco mais!

- Quer dizer que aquela mãozinha boba não foi acidental? Você me confessa isso assim? Nessa cara de pau? Você realmente não existe! Vou preparar o café da manhã para nós. Ainda precisamos preparar o material para o almoço com o Roberto.

- Nada disso Dobby!

Ele levanta o suficiente da cama para alcançar minha mão e me puxar para seus braços. Caindo na cama, e rimos sem parar, como duas crianças. Quando passa ele fica sério, e me lança um olhar preocupado.

- Agora é sério! Deixa eu te dizer uma coisa: Eu entendi! Você está e precisa se concentrar cem por cento no resgate do John. Eu concordo e vou te apoiar e ajudar no que puder. Mas eu preciso saber: Você quer que eu aguarde o término deste caso para que depois a gente possa viver o “nós”? Sei lá, para que possamos namorar, se você quiser! Você quer isso?! Eu preciso saber o que você quer de mim!

- Eu quero você, André! Simples assim! Mas agora...

- Cris, Cris. Para! As primeiras três palavras me bastam. Vamos resolver este caso! Agora vá fazer aquele café da manhã especial que só você sabe fazer, meu elfo doméstico.

Dou uma gargalhada.

- Obrigada! Você não tem ideia de como eu precisava ouvir isso!

Ponho as mãos em seu rosto para lhe dar um selinho. Depois faço cara de indignada.

- Quer dizer que você já está pensando que eu sou a sua mucama particular, não? Ah não! Eu sou o seu elfo doméstico! Nada de bancar o Lucio Malfoy! Não quero ninguém chutando o meu traseiro...onde eu fui me meter?! – E reviro os olhos.

Depois saio rindo em direção ao banheiro. Preciso escovar os dentes e ver o estado do meu cabelo. Tenha medo!

Uma hora depois estamos finalizando nosso café da manhã.

- Vamos trabalhar na campanha? – Pergunto ao André.

- Hum, na verdade só preciso te explicar o que eu fiz. Para apresentarmos para o Roberto.

- Tudo bem. Então me explique!

- Ficou chateada por que fiz sozinho?

- Que droga! Você realmente me conhece! Não gosto de me escorar nas pessoas. Tomar o crédito por algo que não fiz.

- Não seja por isso! Usei a sua ideia sobre campanha de fidelização através do hotsite. Só preciso te mostrar as mudanças que fiz porque acredito que funcionará melhor. – E passamos algum tempo conversando sobre trabalho.

- Sabe, claro que não vou me mudar para sua casa, mas preciso ter algumas trocas de roupas... – Ele está aguardando a minha reação.

- Concordo André, teremos que trabalhar depois do expediente. Provavelmente o Hayden vai te pôr escuta. Teremos que analisá-las, e também te preparar.

- Me preparar como?

- Faremos a sua proteção, principalmente o Hayden, mas você precisa ser capaz de se proteger se não estivermos por perto.

- Eu sei me defender.

- Claro que sabe! Está no DNA masculino, mas digo se defender de situações críticas.

- Como caras armados?

- Exato. Situações com caras armados, reféns e pessoas com todo tipo de transtorno. Esse é mais difícil, mas acho que você não terá que lidar com esse tipo de situação.

Ele suspira.

- Certo! Vamos nos preparar para a nossa batalha.

- Vamos! – Eu respondo.

Ele usa o mesmo terno cinza chumbo com camisa branca.

Hoje preferi usar camisa branca justa, com metade para fora da calça de sarja azul royal, para ficar mais despojado. Para finalizar meu scarpin laranja de camurça. Maquiagem discreta, para manter uma aparência natural. Sinceramente, adoro o efeito, mas detesto fazer maquiagem! Estou pronta.

- Está linda! Sabia que não iria resistir à tentação de colocar uma calça.

- Está me provocando?!

- Não! Longe de mim, mas eu vejo que você não se sente à vontade quando não está de calça.

- Muito bem observado! Me sinto um pouco exposta! Eu sei que é besteira.

- Não é besteira. Você se esconde! E nem adianta me lançar esse olhar homicida! Me prove o contrário! Te desafio a deixar a calça no guarda roupa por uma semana.

- Quanto tempo temos?

- Estamos bem de tempo. Vai aceitar o desafio?

- Não gosto de ser desafiada! Sim, eu aceito! Já volto.

Vou ao quarto e troco a calça por uma saia lápis preta. Gostei do resultado.

- Nem uma palavra! Agora vamos! – Ele sorri.

- Só ia dizer que ficou ainda mais linda! Vamos – Ele abre espaço no corredor para que eu passe.

Chegando ao restaurante percebemos que o Roberto ainda não chegou. O telefone do André toca:

- Oi Roberto, já estamos... – Ele ouve – Sério, cara? Onde você está? Não! Não! Estou indo para ia! Até já!

- O que houve?

- A mãe do Roberto foi parar no hospital. Não sei o que houve. Ele deve estar arrasado, ela é a pessoa que ele mais ama no mundo. Preciso ir para o hospital.

- Eu vou para agência. Me dê notícias?!... Você vai me achar um monstro por dizer isso: Fique próximo, não só para dar apoio ao seu amigo, mas pelo momento de fragilidade. Isso vai fortalecer a amizade e os laços de confiança.

- A ideia é horrível! Mas eu entendo onde você quer chegar. Você está certa! E sinceramente? Independentemente do grau de envolvimento dele, não consigo mais vê-lo como a mesma pessoa. Nos vemos mais tarde. – E nos despedimos com um selinho.

O dia passa a mil, principalmente porque deixei de fazer o que tinha programado ontem, então preciso compensar. Não encontro as meninas, mas falo com elas quando ligam para pedir ajuda, estão nos clientes e a sala é só minha. Meu chefe vem a minha mesa ao final do dia. Espero que seja só para desejar boa noite.

- Vai ficar até tarde, Cristina?

- Oi Caio. Vou embora daqui a pouco. Só preciso responder alguns e-mails.

- Você e o André estão juntos? – Fico roxa.

Dá para ser mais direto?

- Ah, sim! Estamos namorando.

- Sabe que o senhor Mauricio não gosta disso, né? Funcionários se relacionando?

- Olha Caio, acho que o senhor Mauricio não se importa com a vida pessoal dos seus funcionários, desde que ao final do mês os respectivos clientes estejam satisfeitos e garantam o seu pró-labore!

- Guarde as garras, Cris! Só estou te avisando para ter cuidado. Eu gosto do seu trabalho, mas você está iniciando a sua terceira semana na empresa e passou a tarde inteira fora com seu namorado.

- Agradeço pela preocupação! Vamos esclarecer uma coisa?! Eu sou uma das quatro garotas do atendimento. Nosso trabalho, em muitos momentos, consiste em estar fora da agência, em reuniões com clientes ou fornecedores. A única diferença é que neste caso, estávamos indo ao comércio, onde o produto é vendido. Nós conversamos com vendedores e gerentes sobres seus clientes, sabe por quê? – Ele fica em silêncio. – O motivo é simples: Eles lidam com o cliente diariamente. Eles conhecem as suas necessidades, características e queixas. Um bate papo com alguns deles nos traz informações que pesquisa nenhuma nos dá. A gente pode ver na prática como tudo funciona: Abordagem, dúvidas e reações. – Mais silêncio. Acho que já consegui convencê-lo. Não posso perder esse emprego e deixar tudo nas costas do André. – É natural a sua preocupação, mas por favor, não duvide do meu profissionalismo. Se fosse desonesta eu poderia ter omitido o meu namoro. Não agi de má fé. Minha reunião era com o Roberto, mas ele incluiu o André, e saímos os três. Só que o Roberto concluiu que o projeto precisava de mais informações, aí fomos buscá-la para entregar hoje. – Mais silêncio.

- Desculpe Cris! Não queria que você me interpretasse mal. Você é nova aqui e não parecia esse tipo de pessoa, mas eu precisava questionar. Preciso confiar nas pessoas que trabalham comigo e isso não acontece do dia para noite.

- Compreendo e concordo com você. Agradeço por vir direto a mim, ao invés de tirar conclusões precipitadas.

- Eu é que agradeço. Boa noite Cristina... amanhã conversamos sobre esse briefing? Não sei se o Roberto estará disponível. A mãe foi hospitalizada, mas não sei o motivo.

- É! Eu sei! Estávamos aguardando por ele para tratar do hotsite.

 - Não esqueça de aprovar com o cliente o formato.

- Não! Pode deixar, mas vamos levar duas propostas e ver o que ele gosta, mas precisamos primeiro viabilizar essas ideias com o Roberto. – Meu celular toca. – O André. Deve ter alguma informação sobre a mãe do Roberto... Alô?! Oi André, o que houve? Estamos aqui, eu e o Caio, aflitos!

- Você ainda está na agência com seu chefe?

- Sim! A mãe do Roberto está melhor?

- Ela não resistiu. Foi suicídio, tomou remédios e cortou os pulsos. Conseguiram fazer uma lavagem estomacal e contiveram a hemorragia, mas a quantidade de sangue perdido... – Ele suspira – Ela acabou sofrendo uma parada cardíaca e morreu.

- AiMeuDeus! Eu sinto muito. Estou indo para aí!

- Não precisa! Ele acabou de sair daqui. Foi para casa. Me ofereci para ficar com ele, mas ele disse que precisa ficar sozinho. Amanhã ele passa os detalhes sobre o velório e enterro, e aí nós o vemos.

- Você vai para sua casa? Não esqueça de separar algumas roupas para deixar lá em casa.

- Pode deixar. Nos falamos quando eu chegar em casa, tenho algumas coisas para lhe contar.

- Combinado! Vai para casa, e cuidado no trânsito.

- Pode deixar. – Nos desligamos e percebo meu chefe me olhando com anseio. Tinha me esquecido dele.

- A mãe dele não resistiu. Provavelmente o velório e enterro serão amanhã, mas o Roberto estava arrasado demais para qualquer coisa. Foi para casa, disse que quer ficar sozinho. Quem descobrir primeiro local e horário avisa o outro?

- Quem souber primeiro avisa a agência. Você cuida da compra de flores?

- Quando tiver local e horário definido eu cuido disso. – Solto um suspiro – Depois dessa eu estou encerrando meu dia.

- Claro! Eu também! E... Cris? Se me permite uma última intromissão, seja bacana com o André, está bem? Ele é um cara legal, e não se envolve com ninguém levianamente. – Abro um sorriso.

AiMeuDeus! Os homens desse lugar vão acabar montando um fã clube para o André.

- Pode deixar, Caio! Eu também não faço esse tipo. Boa noite e manda lembranças à Raquel.

Quinze minutos depois estou em casa. A Nair e o Irineu vêm em minha direção pedindo carinho. Pego primeiro ele porque sei que se cansará de mim mais rápido, depois que ele se estica eu o acaricio uma última vez com o rosto, solto e pego a Nair que não para de miar reclamando por atenção, fica um bom tempo no meu colo, até ela resolver que quer descer para brincar com o irmão. Espero que não quebrem a casa toda!

Após vestir uma roupa mais confortável resolvo ligar para o André.

- Oi André, chegou bem em casa?

- Sim! Dia difícil. Sabe o que disse sobre não ter mais dó do Roberto? Retiro tudo! O cara está destruído com a perda da mãe.

- André, como isso foi acontecer? Pelo visto ela não queria ter dúvida que conseguiria se matar.

- Talvez seja apenas desespero, mas o Roberto acredita que é o responsável pelo suicídio da mãe.

- Como é que é? Me conta tudo!

- Ele disse que era o responsável, que a mãe se matou por sua culpa. Até aí eu vi como um filho em desespero, incapaz de aceitar a doença da mãe, mas aí ele começou a falar de castigo. Disse que todos nós pagamos por nossos pecados e ele sabia que a partida da mãe era apenas o primeiro sinal. Tentei consolá-lo dizendo que ele estava perturbado, que era compreensivo por perder a mãe e ele me disse que eu não o conhecia, ele se chamou de monstro. Disse que era cruel e mesquinho. Ele está em um nível de sofrimento absurdo.

- Deus! Ele está em desespero. Esse é o momento, talvez ele seja inocente, talvez sua participação se limite a chantagem... nossos pecados realmente retornam para cobrar a dívida. Cedo ou tarde.

- Ainda estamos falando sobre o mesmo assunto?!... Vou ligar e insistir que ele não deve ficar só. Mande uma mensagem prestando suas condolências e se disponibilizando ao que ele precisar. Ligue para Andréia, talvez ela tenha alguma informação útil.

- Pode deixar, vou fazer isso já, chefe!

- Muito engraçada! Estou tentando compensar o rolo que te meti.

- A escolha foi minha! Não me arrendo por mim, só por você. Vamos à ação. Depois me retorne, ok?

- Pode deixar! Beijo.

- Beijo.

Ligo para Andréia:

- Oi Deia, é a Cristina, tudo bem? Desculpe o horário, é que estou tão preocupada com o Roberto que pensei que você talvez saiba de algo.

- Oi Cris, também estou preocupada, ele está transtornado. Não me quer por perto, quer ficar sozinho, não sei o que fazer. Ele está em desespero.

- Vou pedir para o André ligar para ele, são amigos há tantos anos, acho que se alguém pode ajudá-lo, esse alguém é o André.

- Por favor, faça isso! Ele não fala com ninguém, os parentes estão preocupadíssimos.

- Vou ligar, qualquer novidade nos falamos, beleza?

- Certo! Está certo!

Desligo. – Que droga! – Ela não sabe nada de nada. Espero que estejamos no caminho certo. Pobre John.

Mando a seguinte mensagem a Roberto: “Sinto muito pela sua perda! Não existem palavras que definam o seu sofrimento, mas você não está só. Não precisa passar por isso sozinho! Pode contar com os amigos! E estou aqui para você! Beijos. Cristina. ”.

- Oi André, já falou com ele?!

- Ele não atende. Conseguiu alguma coisa?!

- Nada! Mandei a mensagem dando meus pêsames e dizendo que ele pode contar com os amigos. Ele é um cara fraco emocionalmente?

- Ele é um cara que esconde muito as emoções, mas não acho que seja fraco. Pelo menos não até hoje.

- Droga! Precisamos descobrir algo mais. Estes próximos dias são vitais e... seu celular está tocando?

- É ele! Já te ligo!

E agora é o meu celular que toca:

- Que bom ouvir a sua voz, Hayden!

- O que está havendo?

- O Roberto perdeu a mãe hoje, está vulnerável e estamos tentando obter informações. Ele disse algumas coisas ao André. Nada que prove nada, mas coisas que trazem desconfianças – E o ponho a par das notícias.

- Essa é a parte que não gosto do nosso trabalho. Manipular alguém vulnerável, mas realmente não temos tempo. Excelente a ação do André, ele tem talento.

- Nem continua! Não quero essa vida para ele!

- Bom, ainda é muito cedo, mas uma coisa é certa: É ele quem decide isso. Liguei para avisar que chegaremos aí amanhã por volta das oito horas da noite.

- Quem virá com você? – Questiono ignorando o corte que me deu. Ele está bravo por tudo que fiz, e não posso culpá-lo por isso.

- A Beatriz e o Luciano.

- Ah! Graças a Deus! Muito obrigada Hayden. Sei que você está bravo comigo, e sei que está certo, mas eu realmente agradeço!

- Sei disso Cris! Já disse que me importo com você. Eu quero que você conte comigo sempre.

- Obrigada! Eu conto! Você é meu porto seguro, pode acreditar. A linha fixa está tocando, deve ser o André.

- Nos vemos amanhã. Tenha cuidado.

- Pode deixar. Faça uma boa viagem, tchau!... Alô? O que houve?

- Estou a caminho da casa dele. Preciso que você me encontre lá. Sua mensagem o sensibilizou, ele pode estar suscetível a influência, acho que você pode avaliar isso melhor que eu.

- Me passe o endereço por mensagem que eu já vou.

 

TIME EM CAMPO

 

Esperei quase uma hora para sair de casa, pois Roberto mora próximo de mim, no bairro do Butantã, numa rua com ares de particular, com grandes propriedades. Parece a área mais elitizada do bairro. André está manobrando o carro, chegamos juntos. Saio do carro e ando em sua direção. Me sinto nervosa e não sei se é por ver o André ou pela situação que nos encontramos. Concluo que são as duas coisas!

- Oi! – Diz ele me dando um selinho. Sinto a mesma agitação nele.

- Oi! Ele sabe que também venho?

- Sim. Ele ficou satisfeito.

- Ótimo, então vamos.

Tocamos a campainha, e algum tempo depois ele aparece. Está pálido como um fantasma, todo amarrotado.

- Obrigado por virem. – E olha diretamente para mim – Fico muito grato por isso, em especial por você que conseguiu fazer com que a Andréia parasse de me ligar de cinco em cinco minutos. Estava me deixando maluco! Por favor, entrem. Você já é de casa André.

- Com licença.

- À vontade. Posso lhe servir algo? Como deveria me comportar em um momento como esse?

- Eu e a Cris viemos por isso, cara! Para te ajudar com isso. Não precisa se preocupar conosco, não viemos para uma visita social, viemos te apoiar.

- Acho que você não se alimentou hoje, né? Precisa comer e descansar, amanhã será um longo dia. Alguém está cuidando dos detalhes?

- Minha tia está cuidando de tudo, todos os detalhes. Ficou de ligar amanhã cedo. O enterro será no jazigo da família, ao lado do meu pai. Só precisamos descobrir os horários... dói tanto, mas tanto! Não existe mais ninguém nesse mundo que realmente se importe comigo. Pior, eu a decepcionei, eu a matei.

Eu seguro as mãos de Roberto junto às minhas. Caramba! O estado devastado dele é de dar dó.

- Não Roberto! Você não teve culpa, sua mãe estava doente. Doente demais para pedir ajuda. Foi uma fatalidade que a matou.

- A fatalidade sou eu! Tudo que eu mais temia, aconteceu. Ela conheceu o verdadeiro eu, e não pôde mais ignorar. Ela não conseguiu lidar com a verdade, não conseguiu...

- Foi você quem a encontrou?

- Não! Foi o Mauricio – Eu e André trocamos um rápido olhar. – Eu tinha uma reunião hoje cedo com o Mauricio aqui em casa. 

- Eu não vi o Mauricio quando cheguei ao hospital.

- Ele chamou a ambulância e depois foi a meu quarto. Quando a ambulância chegou eu fui junto com ela e nem lembrei que ele existia. Acho que depois que passou a adrenalina ele entrou em estado de choque! Ficou em pânico com o que viu. Eu entendo. Também me sinto em choque! Prestes a surtar!

- Roberto, eu sei que você não pode fugir deste momento, mas você não deveria ficar nesta casa. Não hoje. – Diz André.

- Esta é a minha casa! Não vou sair daqui.

- Posso lhe preparar algo para comer? Você precisa comer alguma coisa e descansar! Senão irá desabar.

- A Cris tem razão. Por favor, coma alguma coisa, ela cozinha muito bem! Posso garantir.

Ele abre um sorriso triste.

- Vejo que vocês finalmente se acertaram, pelo menos algo bom aconteceu. O que será que o doutor Ricardo vai achar disso? – Ele solta uma pergunta sussurrada.

André faz cara de espanto, mas eu gesticulo minimamente para que ele aja com naturalidade, como se não tivesse sido dito nada demais.

- Acho que já sou bem crescidinha para tomar minhas decisões! Quer comer algo em especial? – Pergunto com doçura na voz.

- Tanto faz, gosto de tudo que tem na geladeira, mas não sei se consigo comer algo. Acho que nunca mais vou conseguir comer alguma coisa.

- Você vai superar! Eu te garanto! – Eu digo.

Vou à cozinha. Me certifico que eles não podem me ver. Depois faço uma rápida checagem. Não existe nenhuma escuta ou câmera escondida, então coloco uma, depois me preocupo com a autorização.

Faço uma lasanha de berinjela e suco de maracujá. Em todos eles acrescento um pouco de tranquilizante, somente o suficiente para deixá-lo cansado e decidir que irá dormir.

Estou surpresa que ele conheça meu pai. Por outro lado, descobri de onde vem o contato do Mauricio com o meu pai após uma pequena investigação: Há oito anos, a esposa do Mauricio adoeceu, ela tinha câncer de mama. A doença foi descoberta em estágio avançado e a maioria dos oncologistas consultados diziam ao Mauricio que ele devia se preparar. No entanto, quando pediu a opinião do meu pai, ele não ficou convencido com o prognóstico, e acreditou na capacidade de luta da senhora Vera. Ele a operou retirando as duas mamas, ela teve um ano muito difícil com inúmeras recaídas e tratamentos, mas se recuperou. No final fez o implante de próteses de silicone.

Acredito que isso tenha deixado em Mauricio uma dívida de gratidão com meu pai, mas agora me questiono se existe algo mais.

- Aqui está. Você precisa se alimentar um pouco.

- Vocês não vão comer?

- Jantei antes de sair de casa, mas aceito um suco – Diz André.

- Eu acho que também vou de suco!

Ele fica momentaneamente tenso, depois relaxa como quem diz “dane-se” e resolve comer. – Será que está desconfiado?

- Você deve achar estranho que eu conheça o seu pai. – Bingo! Ele sabe que falou demais.

- Na verdade não! O André sabia quem era meu pai quando conversamos pela primeira vez, então supus que todos na agência saibam. Afinal, ele é uma celebridade nacional na área médica, e como somos publicitários... – Dou de ombros – Enfim, as pessoas conhecerem o meu pai não é nenhuma novidade.

Faço ares de pouca importância e ele relaxa. Esse gesto me deixa ressabiada. O que está acontecendo?!

- Sua lasanha está ótima, o André é um cara de sorte.

- Sou sim cara. Mas estamos preocupados contigo! Você precisa descansar. Precisa dormir um pouco, o quarto que sempre uso está em ordem? Posso dormir lá com a Cris?

- Pode sim! Estou me sentindo mesmo cansado. Acho que comi demais! Você colocou algo na minha bebida? – Diz sorrindo, mas esse gesto simpático não chega em seus olhos. Ele parece em alerta. Ele está receoso comigo.

- Suco de maracujá, lembra? Tranquilizante natural! Era essa a intenção, você precisa descansar. Todos nós precisamos. Eu acho até que você deveria tomar um calmante, para ajudá-lo a relaxar e dormir melhor. Não se preocupe, amanhã estaremos ao seu lado!

- Nem sei como posso agradecê-los! O André é um bom amigo de longa data e acho que acabo de ganhar uma amiga hoje! Bom ganhar algo depois de um dia desses.

Abro um sorriso simpático.

- Fico feliz que se sinta assim. Estou aqui para ajudá-lo, como uma amiga. E espero que possamos em um futuro próximo desfrutar de um momento mais feliz.

- Eu também! Obrigado Cris! Obrigado André! Vou me deitar um pouco e tentar dormir.

- Bom descanso, cara! Vamos só arrumar as coisas para não deixar bagunça na cozinha, e já subimos, se não se incomodar.

- De forma alguma. Você está em casa, cara! Valeu mesmo André!

Ele dá um abraço no André e outro em mim. Sinto um calafrio nada agradável. Cada vez acredito mais em sua culpa. Quando ele sai da sala aguardamos um pouco em silêncio, tirando a mesa. Quando temos certeza que estamos a sós o André começa a sussurrar:

- Por que não insistiu no calmante?

- Para não levantar suspeita. Ele está desconfiado. Coloquei uma câmera e um gravador escondidos na cozinha, preciso fazer o mesmo com a sala e o escritório.

- Vamos tentar pôr no quarto dele também?

- Não! É muito arriscado. Esse é o momento de ganhar a sua confiança e não o contrário, além do mais, duvido que os negócios são feitos em seu quarto. Aposto que a mãe dele descobriu algo e quando ele percebeu que não poderia resolver sozinho, chamou o Mauricio. Estou com algumas dúvidas: Quem está no comando? Roberto ou Mauricio? Ou será que eles são parceiros? E por que falou sobre meu pai como se fossem íntimos?

- Está achando que seu pai pode estar envolvido?

- Não! Ele é um médico bem-sucedido. Salva vidas! Por mais raiva que tenha no coração, sua profissão é o que o mantém vivo, não poderia fazer algo desse tipo. Mas não posso ignorar o modo como ele falou do meu pai... Bom, mãos à obra! Não podemos divagar neste momento, agora é hora da ação!

André me ajuda examinar a sala e instalar a câmera, depois no escritório que estava trancado. André achou estranho, já que Roberto mora sozinho, mas sabia onde as chaves ficam guardadas, então não foi um problema. Algum tempo depois subimos para o quarto. A porta de Roberto estava fechada, e André foi checar se estava tudo bem com ele, antes de irmos para o nosso quarto.

- Acha que devemos revezar? Cada um dorme duas horas para mantermos a vigilância na casa? – Eu questiono.

Não gosto de dormir numa casa estranha quando desconfio do caráter de seu dono.

- Não acho que consiga dormir agora, mas já são meia noite. Vou colocar o despertador para às cinco horas. Ele está apagado, não vai acontecer nada! Descanse, precisamos estar bem para não perdermos nenhum detalhe amanhã.

- É, acho que está certo! Vamos tentar dormir. – E me aproximo me aconchegando em seus braços. Isso é tão bom!

- Ah! Agora que eu não consigo dormir mesmo! Não com você assim, tão perto. – E me dá um beijo no pescoço. Solto um suspiro.

- Comporte-se! Agora não é hora para isso!

- E quando será a hora?

- Já conversamos sobre a nossa relação, aliás foi você quem apresentou os parâmetros. Agora, por favor, não me distraia. Não me atente!

- Eu poderia fazer isso!

- Claro que poderia, mas ainda não é o momento. Fica assim, juntinho de mim. Vamos tenta dormir.

- Combinado, mas eu posso te dar uns beijinhos, só uns beijinhos...

E me beija. A cada novo beijo ele fica mais intenso, mais quente, suas mãos me tocam, me apertam, passeiam pelo meu corpo e sei que estou prestes a perder o controle, então o faço parar.

- Sabia que você cuidaria dos limites. Não sei como você consegue quando eu queria tanto seguir em frente. – Abro um sorriso.

- Ah! Você não faz ideia de como eu queria ir em frente. Mas não podemos, não agora, não aqui. Acredite, quando te pegar de jeito você vai querer fugir! – E com essa ele dá uma gargalhada. – Shh! Estamos de frente para o quarto do Roberto, seria péssimo nos ouvir rindo! – Mas eu também estou dando risada.

- Você fala um absurdo desses, e espera que eu fique quieto? Vamos ver quem pede arrego!

- Vamos ver! Agora, vamos dormir.

- Boa noite Dobby! – Ele diz, com humor na voz.

- Boa noite Gollum! – E lhe dou um selinho demorado, em seguida ponho a cabeça em seu peito, onde me sinto em casa.

Às cinco horas acordamos com o despertador. Desligamos rápido para garantir que não atrapalhasse o sono do Roberto. Após usar o banheiro vou à cozinha preparar nosso café da manhã, enquanto André vai ver se o amigo está bem.

Ele desce dez minutos depois. Explica que Roberto ainda está dormindo, e resolveu deixá-lo descansar mais um pouco. Tomamos café e conversamos. Por volta das seis horas acho que ele precisa acordar. Subimos até seu quarto, eu com uma bandeja de café da manhã em mãos, para justificar a minha presença.

- Roberto? Hora de acordar, cara! Trouxemos seu café.

Ele acorda totalmente grogue. Parece não entender nossa presença. Até que seu rosto é tomado por uma expressão de dor. A consciência dos fatos voltou. É impossível não se sensibilizar com a sua dor. Mesmo tendo dúvidas sobre o seu caráter.

- Deus! É tudo real, não é? Deus! Por um momento eu pensei que fosse só um pesadelo.

- Tente se manter firme cara, eu e a Cris estamos aqui, com você!

- Ah droga! Que merda de pessoa eu sou! Eu sou a escória, eu sou uma fraude, uma farsa!

- Não, Roberto, você é só uma pessoa sofrendo uma perda irreparável. Respire fundo. Sua mãe não ficaria feliz em te ver sofrendo tanto.

- Minha mãe nunca foi o tipo de pessoa que passa a mão na cabeça. Ela preza o certo acima de tudo. Quando meu pai morreu ela ficou arrasada, mas quando soube a estória toda, passou a odiá-lo. Ela julgou como falta de caráter, minha mãe dizia que errar é humano, mas não existem desculpas ou justificativas para a falta de caráter. É algo inaceitável e abominável.

Sinto um calor no meu íntimo, é o meu ser concordando com todas as minhas forças com essa pobre senhora. Ela tirou a própria vida por um coração partido. Pobre coitada! Traída pelos homens da sua vida.

- Se isso fosse real, ainda não justificaria tirar a própria vida! Não conheço os seus motivos por pensar assim, mas posso garantir, sua mãe estava muito doente, Roberto. Eu posso imaginar a sua dor. – Diz André

- Está lindo o café, mas não acho que vá conseguir comer nada.

- Tome pelo menos um iogurte. Desta vez não coloquei nenhum tranquilizante. Me desculpe por isso! Mas você precisava descansar.

Ele abre um sorriso triste. Mas parece comovido.

- Eu bem que desconfiei, mas não entendi por que você faria isso.

- É simples!! Você precisava descansar. O André me contou como você estava e fiquei muito preocupada. Precisava deste repouso. Ainda vem um momento bem mais difícil. Vai precisar de todas as suas forças!

- É, você tem razão! Obrigado! Vocês dois estão sendo incríveis comigo!

O telefone toca e percebemos que se trata de notícias sobre o funeral. Pelo seu tom de voz impaciente fica claro que não tem muita simpatia pela tia. Ao retornar, ele informa que o velório começará a partir das onze horas, e o enterro às três da tarde. Ainda temos quatro horas.

- Bom, se estiver se sentindo melhor, vou para casa, preciso de um banho e roupas mais adequadas. Vou comunicar a agência.

- Ah, obrigado por cuidar disso, Cris! Realmente não tenho cabeça para nada disso! André, pode ir com ela, se quiser. Estou bem, na verdade, acho que preciso de um tempo só! Mas agradeço demais o apoio de vocês. Estou me sentindo muito mais centrado.

- Tem certeza, cara? Você realmente me parece melhor! Mas...

- Tenho! Tenho sim! Vai lá, fique com a sua garota!

- Então nós vamos. Nos encontramos na capela.

- Sim! Está ótimo! Obrigado e desculpe por tudo! Estava a ponto de surtar, falando coisas malucas, eu nem sei o que poderia ter feito sem vocês, acho que tem razão, Cris. Talvez seja algo hereditário.

- Sim, é possível! – Digo segurando a sua mão com as minhas duas, como quem se preocupa – E o mais importante agora é não permitir que isso se repita! Fique bem, mas se perceber que pode ter uma recaída, nos ligue! Essa não é a hora para pudores. Não hesite em contar conosco!

- Pode deixar! Obrigado! – Ele me abraça e depois abraça o André. O seu toque me transmite frio e repulsa. Cada vez que me toca eu uso todo meu autocontrole para não me denunciar e demostrar o asco que sinto por ele.

Assim que chegamos em casa, e fechamos a porta, o André deixa os cabides com pilhas de roupas no sofá de dois lugares e me agarra. No início imagino que está com segundas intenções, mas quando olho para seu rosto vejo o quanto está tenso.

- Você não imagina o alívio que senti quando ele pediu para ficar só. Não quero você perto dele. O modo como ele te olhava! Eu já vi aquele olhar antes. Não duvido que ele passe a te assediar depois dessa noite.

- Tá viajando?! Ele ficou com um pé atrás comigo o tempo todo! Em você ele confia, mas em mim, ainda não! Estou intrigada por ele citar o meu pai e depois fazer questão de justificar o fato de conhecê-lo. Tenho uma péssima impressão sobre esse cara. Cada hora eu acredito mais que ele tem culpa!

- Concordo com você! Ele tem culpa no cartório e o comentário sobre o seu pai foi estranho. Agora, esse é o jeito do Roberto! Ele é sempre desconfiado. O que mais me incomodou foi como ele voltou a se interessar por você quando percebeu que estamos juntos... quando eu disse que estava a fim de você ele falou que tudo bem, existiam muitas ofertas!

- Canalha da pior espécie! E essa estória da mãe dele? O Mauricio a encontrou? Deus! Fico imaginando se realmente houve um suicídio, ou se trata de um assassinato por queima de arquivo.

- Não deveria existir uma perícia no local?

- Sim! Mas acho que a participação do Mauricio foi omitida. Alguma coisa não se encaixa nessa estória. Ainda bem que a equipe chega hoje à noite... você se incomoda de ficar no quarto comigo? Como são só dois quartos de hóspedes, vou deixar um à disposição da Bia com o Luke e o outro para o Hayden. Mas se você não quiser, tudo bem! Eu divido o meu quarto com o Hayden! – E abro um sorriso.

- É sério mesmo?! Está me chantageando?! Sabe que chantagem é crime, né?! Quer dizer que se eu não dormir com você, você pedirá para que o seu ex-namorado durma?!

- Ele não é meu ex-namorado! Ele é meu amigo! Então sim... e não quanto a chantagem, estou lhe dando opções!

- Ah, claro! Você é muito legal!

- Sim, eu sou! Agora sério! Vamos analisar todas as informações que obtivemos. Você acha que ele estava delirando? Porque eu acredito em crise de consciência. Mas hoje as cortinas já se fecharam.

- Também acredito nisso! Hoje ele já está mais controlado, distante.

- Ele pôs a máscara de volta no lugar. E ele fez de novo, como ontem. Quis justificar o que havia dito sobre um assunto já esquecido. Por via das dúvidas, vou pedir para o Hayden investigar o doutor Ricardo!

- Deus, Cris! Você acha que seu pai pode estar envolvido? Sabe o que eu acho? Quando você estava para entrar na agência todo mundo sabia que você era a filha do médico que salvou a vida da esposa do chefe, então todos imaginaram que você seria a protegida do dono.

- Bom, eu nem sabia disso! E foi o Caio quem me contratou! Eu fiz uma entrevista por vídeo conferencia, eu ainda estava nos Estados Unidos quando fiz a entrevista. Eu nunca tive contato com o Mauricio.

- Não sei te dizer sobre todo o processo. Somos nós quem escolhemos os funcionários, mas às vezes o dono se intromete, quando quer colocar alguém aqui dentro. Você não fez nenhum comentário com seu pai?

- Isso não existe! Não ligo para falar com meu pai. Quando algo precisa ser dito conversamos através da sua secretária. Eu pedi para que ela avisasse que possivelmente voltaria ao Brasil se uma entrevista de emprego no Grupo Premium desse certo. O Hayden pediu que eu fizesse isso, para não levantar suspeitas sobre a minha volta.

- Entendo! Estou curioso sobre as câmeras!

- Hum! Que coisa feia! Vamos lá! Eu te mostro.

Fomos para o meu quarto, separei uma parte do meu guarda roupa para ele. – AiMeuDeus! – Quanta coisa já aconteceu, hoje ainda é quarta-feira! Estou envolvida com o André há menos de uma semana e um monte de loucuras já ocorreram.

Sentamos na minha cama, meu notebook está conectado na tevê e eu uso o mouse sem fio. Começamos a assistir ao vivo Roberto em seu escritório.

- Eu sei, porra! Eu sei! Mas o que está feito já era! Não se preocupe com isso! A garota é que nem o meu amiguinho: Tão ingênua que chega a ser burra! Esperava mais dessa garota, morou sozinha desde os dezoito anos... – Ele solta um sorriso arrogante – Não sacaram nada. No máximo acharam estranho, mas como faço direitinho o papel de puxa saco, é isso que vão pensar! Eu sei, eu sei! Adoraria tirar uma casquinha, ela me deu mole, sabia? Queria almoçar comigo sozinha e tal, mas não aceitei, achei uma ótima ocasião para fazer uma média, não vale a dor de cabeça. Meu amiguinho ficaria muito magoado e eu me importo demais com ele... – Mais um sorriso arrogante – O quê? Claro que vai! Você tem que aparecer! Se você não aparecer aí sim vai ser suspeito! Está tudo sob controle. Se cada um fizer a sua parte, vai ficar tudo bem! Beleza! Nos vemos daqui a pouco.

Ele sai do escritório, se senta na mesa e come desesperadamente. De forma alguma parece alguém deprimido. Na verdade, parece alguém aliviado. Deus!

Acho que realmente forjou o suicídio da mãe!

Às dez e quarenta saímos de casa. André usa um jeans e camisa pretos. Eu idem. A única diferença é que uso uma bota de cano curto enquanto ele usa um tênis preto. Andamos de mãos dadas, e mesmo em um velório, percebemos as pessoas da agência olhando e comentando. Amanda pisca quando olho em sua direção, e em resposta lhe direciono um sorriso tímido. Pelo visto, todos foram pontuais para apresentação do circo!

Roberto está sentado próximo ao corpo da mãe. Os outros diretores lhe rodeiam. Uma senhora que pela semelhança deve ser a sua tia está em direção oposta à de Roberto. Pelo visto, ela sabe perfeitamente o tipo de sobrinho que tem!

- Meus pêsames, Roberto! – Digo ao me aproximar.

- Ah! Meus amigos! Que bom que chegaram! Por favor, fiquem ao meu lado! Sou muito grato pelo apoio de vocês.

- Estamos aqui, cara! Pode contar conosco. Espero que tenha ficado bem! Eu queria te ligar assim que chegamos na casa da Cris, mas ela não deixou. Disse que você precisava deste tempo sozinho.

- Ela estava certa! Eu realmente precisava ficar só! Cuida bem dessa garota! Ela é incrível!

- Eu sei, eu sei! Vou cuidar. Com ela ninguém mexe, nem por cima do meu cadáver!

Dou uma cotovelada no André. – Mas que comentário mais inconveniente! – Espero que Roberto não tenha entendido a ameaça velada.

Afinal, ele nos julga imbecis!

- André! Que coisa horrível de se dizer! – Eu digo – Não queremos monopolizar a sua atenção. Estamos por perto.

Imediatamente os olhos de Roberto ficam marejados.

- Por favor, fiquem próximos. Segui seu conselho e tomei um calmante antes de vir para cá! Mas tenho medo de ter uma recaída e entrar em pânico. Fiquem próximos. Por favor! – Ele diz segurando as minhas mãos com as suas.

Ah! Que vontade eu tenho de fugir do seu toque!

- Nós estaremos. – Diz André me abraçando pelos ombros de forma possessiva.

- Com licença. – Eu digo ao me distanciar.

Estou com medo que o André acabe rachando a cabeça do Roberto ao meio. Não entendo porque houve essa mudança entre os dois. Estão se provocando deliberadamente, sem disfarces.

Preciso questioná-lo mais tarde sobre sua relação com Roberto. Tem alguma coisa muito errada!

Cumprimentamos colegas de trabalho. Algumas pessoas sem noção fazem comentários sobre estarmos juntos, mas a maioria age com discrição.

Afinal, estamos em um velório!

Faltando meia hora para finalizar o velório, o senhor Mauricio entra na sala. A conversa cessa imediatamente. Todos ficam prestando atenção em seus passos, o lado bom é que podemos fazer o mesmo. Ele vai até Roberto que desmorona em seus braços, uma cena realmente comovente porque Mauricio também chora como se tivesse perdido a própria mãe. – Canalhas malditos! – Faço uma promessa a mim mesma: Eu vou descobrir exatamente o que houve e eles pagarão por seus crimes, ou não me chão Cristina Batista Carter!

Quando os dois se acalmam, vejo que Roberto nos procura entre os presentes. Então nos aproximamos. Mauricio cumprimenta André e Roberto me apresenta como novo atendimento. Mauricio diz que lamenta me conhecer em tal ocasião. Enquanto observa nossas mãos dadas, mas não fala nada! Apenas parece refletir sobre o assunto.

Nos afastamos e ficamos observando até a hora do sepultamento. – Detesto isso! – Ignoro o que está acontecendo e observo os dois constantemente. Qualquer um diria que são dois amigos muito próximos que sofrem pela perda de uma pessoa querida em comum, o que seria aceitável, já que o Roberto está há tantos anos na Premium. Pena que mais ninguém tem essa relação com o senhor Mauricio, pelo contrário, as pessoas parecem ter medo dele, como meu chefe que quase teve um treco ao notar que o senhor Mauricio observava que eu e o André estávamos de mãos dadas. Ridículo!

Ficamos por últimos para enfim nos despedirmos e reforçamos que ele poderia nos ligar a qualquer hora e momento.

Hoje de manhã, logo após o e-mail que enviei a todos os funcionários da agência, o Mauricio replicou a mensagem aos clientes e funcionários informando que não teríamos expediente por motivo de óbito.

Todo mundo ficou passado, a agência nunca parou, nem mesmo pela perda de um funcionário.

Por volta das quatro e vinte chegamos em casa. Estou me sentindo agitada. Óbvio que fizeram um teatro para todos. – Será que a mãe do Roberto descobriu a informação que eu procuro? – Estou ficando desesperada, não tenho nada de concreto!

Vou para o quarto e ligo o computador na tevê. Começo a acompanhar. Estou tão agitada que fico em pé enquanto André se senta na minha cama. O Mauricio foi para a casa de Roberto. Isto é perfeito.

- Olha, estou com dor de cabeça de tanto chorar! – Diz Roberto.

- Eu também! Mas acho que exagerei um pouco! Joguei muito remédio nos olhos, ainda estou lacrimejando.

Roberto dá uma gargalhada.

- Foi perfeito! Eu peguei mais leve, só colocava um pouquinho quando ia usar o banheiro, para mostrar que estava me controlando, e aí quando você chegou, a pessoa que estava comigo quando tudo aconteceu, eu não pude mais suportar! Poderíamos trabalhar em Hollywood! Seríamos astros do cinema! – E ri mais uma vez.

- No final deu tudo certo! Mas o que houve? Puta que pariu! Você realmente teve uma crise de consciência? – O sorriso no rosto de Roberto desaparece.

- Sim, eu tive! Não me arrependo e faria tudo de novo, mas eu tive uma crise real de desespero. Ela era minha mãe.

- É, eu sei! Mas você não a matou, ela fez isso consigo mesma!

- Eu a manipulei! Eu a fiz cometer suicídio. Eu usei seu amor de mãe contra ela mesma!

- Mas no final foi ela quem escolheu fazer! Ela se matou porque era fraca! E só os fortes sobrevivem, você é forte! Se não fosse eu mesmo teria lhe matado quando entrou na minha sala para uma “conversa do meu interesse”.

- Isso é verdade! Eu só queria arrancar dinheiro seu, e olha o que aconteceu?!

- Ah! Você saiu no lucro! Ganhou dois sócios e um amigo!

Nesse momento eu congelo. – Dois sócios? – Existe uma terceira pessoa!

- É verdade! Dois sócios, um amigo e um inimigo. Ele me odeia!

- Ele não te odeia, ele só te acha imprudente. E vamos combinar que você foi muito imprudente nas últimas vinte e quatro horas!

- Onde ele está?

- Foi vistoriar a nossa galinha de ovos de ouro. Acho que vamos ter um novo recorde! Vamos prorrogar a data do leilão. Acho que poderemos chegar ao dobro do valor da última mercadoria! – Diz Mauricio com um sorriso malicioso.

- Ótimo! Porque precisamos redefinir as porcentagens!

- Você está maluco?! Você faz o mais fácil! Localizar a mercadoria? Isso é fácil! Acompanhar sua rotina? Mais fácil ainda! É só teoria! Quero ver você pôr a mão na massa! Executar o plano. Cuidar da mercadoria, porque ela precisa estar apresentável! Negociar com aqueles pervertidos?! Fazer a entrega?! Você jamais seria capaz de fazer essa parte. Se você for capaz disso, aí sim a gente conversa!

- Ok! Entendi! Vou então assistir à ação de vocês da próxima vez, pode ser?! Assim eu me preparo.

- Roberto, você bateu a cabeça? Caralho! Isso aqui não é um programa de trainee! Isso aqui é tráfico internacional de crianças, porra! Se formos presos, acabou! Fodeu com as nossas vidas!

- Relaxa um pouco, Mauricio! Não é para tanto! Ninguém vai pegar a gente! Eu estou no esquema com vocês há quanto tempo? Quase nove anos! E vocês estão nessa há muito mais tempo. Não vai acontecer nada!

- Ah, não? Só para que você saiba: Parte da nossa facção foi descoberta e presa!

Deus! São eles! São realmente eles! Só precisamos descobrir o cativeiro do John.

Roberto fica pálido.

- Como assim? Presa? Qual delas?

- A de Los Angeles!

- Porra, Mauricio! Essa é a principal! Que merda! A gente centraliza tudo lá, porra! Eles vão chegar até nós! Desse jeito eles vão chegar até nós!

- É possível que cheguem, mas não tão rápido. Tudo que eles vão descobrir é que existe um grupo atuante da quadrilha agindo no Brasil. Não dá para nos localizar. As crianças transitam com nomes falsos. Será muito difícil, mas não podemos descuidar! Olha... foi o excesso de confiança que fodeu com eles. Não vamos seguir o exemplo. Vamos ficar de olho. Qualquer coisa estranha a gente se fala.

- Não, beleza! Então essa é a nossa última mercadoria importada? Acho que depois desse garoto devíamos tratar só de mercadoria nacional!

- Tudo bem! Se você aceitar uma redução de cinquenta por cento na sua participação eu tento convencer nosso sócio.

- Não, obrigado! Você está maluco?! Na mercadoria nacional sou eu quem mais arrisca o pescoço! E já vou avisando, se a casa cair, não vou ser o laranja de vocês! Meu envolvimento com a mercadoria importada é mínimo!

- Ah, é mesmo? E quem cuida dos documentos falsos? É você o responsável pelo trâmite de troca! E o controle de funcionários da empresa fictícia? Tem certeza que a sua participação é insignificante? Acha que te damos uma porcentagem na mercadoria importado porque somos caridosos? Você está envolvido nisso até o pescoço! É tão culpado quanto qualquer um de nós! E só para constar, gênio: Só o fato de saber já te transforma em cúmplice.

Meu celular toca, me desviando das cenas que se seguem. Tiro volume da tevê. É o Hayden:

- Vocês já chegaram?!?!

- Sim! Conseguimos chegar um pouco mais cedo! Seria ótimo se você abrisse a porta para gente.

 

REFORÇO

 

- Ahhh! – Grito empolgada e saio correndo.

André me segue, já entendeu que meus amigos chegaram.

Abro o portão para que entrem e antes que o Hayden termine de manobrar, a Bia salta do carro, ouço o xingamento dele e a risada do Luciano, nada mudou na minha ausência.

Bia é deslumbrante, acho que essa palavra a define muito bem. É linda, tem traços delicados e olhos verdes, cabelos lisos e castanho claro, embora pinte de preto, um corpão violão, embora eu tenho ouvido a vida toda as suas reclamações sobre o peso, uma bobagem, ela sempre fez o maior sucesso, seja pela sua beleza, seja pela inteligência. Em muitos casos, por ambos!

- Amiga!!! – Diz Bia – Que saudade estava de você!

- Ah, estou com tantas saudades! Tô precisando tanto de você!!! – E nos abraçamos bem forte.

Parte de mim está de volta, a pessoa que mais me conhece nesta vida! Basta trocarmos um olhar que ela entende o que estou passando. Luciano se aproxima de forma discreta e tranquila, como é típico dele. Se apresenta ao André e quando percebo que estão nos observando eu solto minha amiga para abraçar seu marido e meu amigo

- Oi Cris! – Ele diz.

- Estava com saudades de você também, Luciano!

Eu o solto assim que vejo o Hayden se aproxima. Ando em sua direção para diminuir nossa distância e literalmente me jogo em seus braços. Ele me ergue do chão e eu o abraço com os braços e pernas. Ficamos assim por um tempo, até que me lembro que André está presente e certamente não está gostando nada da cena. Pudera! Eu ficaria puta da vida se visse alguém pendurada nele como eu estou no Hayden. Eu o solto e olho para trás, mas não há mais ninguém. Preciso fazer uma oração para o santo protetor das melhores amigas! Certamente foi ela quem os fez entrar. Volto minha atenção para Hayden:

- Estou tão feliz que você esteja aqui!

- Eu percebi! Também estou muito feliz. Estava com muitas saudades. Sem você eu não tenho ninguém para salvar a minha vida!

- Também não tem ninguém para colocá-la em risco, certo?!

- Os riscos são consequências de se estar vivo, Cris! Não é você quem me põe em perigo. Na verdade, você me salvou várias, e várias vezes!

- A recíproca é verdadeira! Você também me salvou várias vezes. Melhor! Você me transformou numa pessoa melhor.

Ficamos nos encarando. Ter o Hayden perto de mim é tão importante quanto o ar que respiro.

- Você fez isso sozinha. Agora vamos entrar para o seu namoradinho não ficar pensando besteira! – Ele diz com sorriso irônico.

Nossa! Me esqueci completamente do André. De novo! Até me sinto mal com isso!

- Vamos entrar! Quero que vocês se conheçam. Você vai ver como ele é incrível. Vocês devem estar cansados e com sono.

-  Sim. O pior é o jet lag. Vamos lá! Quero conhecer o seu chefe!

- Hayden! Ele não é o meu chefe! Não seja tão clichê, por favor! – E damos risada.

Chegando na sala ouço vozes vindo da cozinha. A Bia já deve estar preparando algo.

- Ah! Finalmente vocês entraram. Não se preocupe! Já nos apresentamos para o André! Tô adorando ele! Vou preparar alguns lanches e sinceramente preciso dormir um pouco. Estou acabada! O Ricardo está por aí?

- Deus me livre! Claro que não!

- Ótimo!

- André, eu quero te apresentar o Hayden. Hayden, esse é o André!

Eles se aproximam e se cumprimentam com um aperto de mãos.

- Prazer conhecer você pessoalmente, André!

- Prazer conhecer você também, Hayden!

- Ótimo! Seus namorados já se conhecem. Podemos deixar as formalidades para depois? Já estamos sabendo que o André está sabendo de tudo e está te ajudando. Depois do lanchinho acho que vocês três deveriam conversar. Para deixar as coisas claras e evitar constrangimentos desnecessários. Sabem como é! Temos que agir rápido! Não dá para uma pessoa fazer tudo sozinha. Temos que agir em equipe, e se houver rivalidade entre vocês... O que foi, gente?

Estamos todos olhando embasbacados para Bia. Ela é assim! Direta e sincera. O resultado é que às vezes nos deixa sem fala. Luciano reage:

- Amor da minha vida! Shut up! Vai deixá-los constrangidos!

- Não! Vou evitar que comece o concurso do mijo, disputa de testosterona, ou seja lá como você queira chamar! É assim toda vez!

- Olha Beatriz, eu sei que você é a melhor amiga da Cris. Sei que vocês são a família dela. Vocês já têm meu respeito por esse motivo, mas sinceramente eu não entendo quando você diz que é toda vez assim! Estou chegando aqui agora!

Ficamos em silêncio por um tempo que parece uma eternidade até Bia resolver falar. Foi ela quem criou essa situação:

- Desculpe, André! Você tem razão! Não posso julgá-lo porque nem nos conhecemos direito. Eu estou cansada da viagem e também puta da vida com a minha amiga ali!

- Ah! Já começou?! O que foi que eu fiz?!

- Que merda, Cris! Precisava se jogar em cima do Hayden?! Na frente do André?! Não conheço ninguém melhor que você para detonar uma relação. É impressionante! Vocês dois sempre fazem isso com suas relações. Detonam usando um ao outro! É um saco de se ver!

Silêncio e é a minha vez de rompê-lo.

- Você tem razão, Bia! Eu fiz sem pensar e sem maldade alguma, mas não é correto... – Eu me viro para o André – Eu sinto muito, André. Desculpe se te causei algum desconforto. Não foi minha intenção! Desculpe também Hayden.

- Tá pedindo desculpas por me abraçar?! Para! Nós somos amigos! Amigos se abraçam quando se veem! Ainda mais quando estão passando por dificuldades. Para de viajar, Bia! Ninguém aqui tem mais quinze anos para ser tão inseguro! Somos todos adultos! Eu e a Cris somos amigos. O André é o namorado dela, ponto final! Sem dramas, sem “AiMeuDeus”, como a Cris tem o hábito de dizer!

Todos abrimos um sorriso sem graça. Foi realmente um momento desconfortável. Preciso conversar com André mais tarde. Ajudo a Bia a fazer mais sanduíches e a xingo baixinho pelo show.

- Por que você fez isso? Minha estória com o André já está enrolada o suficiente, não preciso de mais nada!

- A enrolada é você! Geralmente você complica as coisas. Precisa parar de fugir da vida! Para uma agente do FBI que põe a vida em risco para salvar pessoas, você tem muito medo de se machucar! O amor é isso, amiga! Correr riscos! Você tem tanto medo de sofrer que não permite se apaixonar, e principalmente, ser apaixonável.

- Eu sei! Você até tem razão! O problema é que eu estou perdidamente apaixonada pelo André! E ele já se declarou para mim. Tem noção do meu desespero?

- Vocês já foram para cama?

- Beatriz Meyer Mendes! Claro que não!!... Mas quase!

- Você realmente deve estar desesperada! – Diz com um sorriso irônico – Tipo, subindo pelas paredes! Posso saber por que não?

- Porque estamos no meio de um caso?! Porque eu o envolvi nessa confusão?! Porque eu acho que posso agarrá-lo e nunca mais soltá-lo e não querer saber de mais nada, só de estar com ele?! Porque ele me faz pensar em coisas piegas nas quais eu nunca pensei antes?! Estou em pânico, amiga. É isso! Estou em pânico! – Ela abre um grande sorriso e me abraça.

- Depois das primeiras duas desculpas esfarrapadas, você finalmente assumiu o verdadeiro motivo: Você tem medo dos seus sentimentos. É normal! Mas não pode deixar que isso a transforme em uma medrosa! Não mais! Não tenha medo de viver esse amor, está bem? Eu não me arrependo de ter embarcado nessa para estar com o Luciano. Ele é o amor da minha vida! Se o André for o seu amor, as coisas vão dar certo! Só me promete uma coisa?

- Eu sei! Vou tentar ter mais controle sobre o meu comportamento com relação ao Hayden. É que com ele é tão fácil! Nossa liberdade, nossa intimidade é tão simples, tão natural.

- Eu sei! Mas vocês não são mais um casal, são amigos! Sinceramente, se o André sente qualquer insegurança com relação ao Hayden, esse sentimento se agravou nos primeiros vinte segundos de contato entre vocês! Ele me parece legal e você está apaixonada! Não faz besteira!

- Mas ele também precisa entender que o Hayden faz parte da minha vida! Faz parte de quem eu sou! – Bia me lança um olhar de advertência - Ok! Juro que vou tentar!

Os três rapazes entram na cozinha. Estão rindo e o clima parece ótimo, o mal-estar de pouco minutos atrás foi totalmente esquecido.

- Espero que se trate de tentar fazer sanduíches gostosos porque estamos morrendo de fome! – Diz Hayden.

- É verdade! E olha que fomos muito bem tratados! Nos emprestaram o jatinho dos diretores, acredita? Fiquei impressionado! – Diz Luciano.

- Estava contando a eles sobre nossas suspeitas de um assassinato. Estavam me dizendo como terei de me preparar. Vocês me treinarão, para isso irão se revezar, e cada um me dará aulas sobre as suas especialidades. Fiquei impressionado!

- Modéstia à parte, somos bons no que fazemos! Eu e o Luciano somos especialistas em software. Pode nos chamar de hacker! Entramos em qualquer programa ou computador. Também somos ótimos com armas! Mas isso todos nós somos!

- Já estes dois aqui são totalmente letais! – Diz Luciano – Sabem diversos tipos de artes marciais, atiram muitíssimo bem, tem sangue frio para se infiltrarem como espiões, e durante uma ação não hesitam! Sem o menor medo! Isso já nos fez achar em vários momentos que os perderia, mas graças a Deus ainda estão aqui conosco!

- Vocês são literalmente parceiros, não? Me parece incrível! Precisa ter muita confiança no parceiro. Foi isso que fez vocês se casarem?

- Não, André! Na verdade, eu entrei nessa de uma forma bem parecida com a sua! A Cris já fazia parte da organização e me apresentou seus colegas de trabalho: Hayden e o Luciano, e nós nos apaixonamos de cara. Com o tempo ele teve que me contar o que estava acontecendo. Em determinado momento o Hayden disse que eu poderia ser útil à equipe. O Luciano concordou desde que eu também não fizesse trabalho de campo e o Hayden achou perfeito porque essa parte fica mesmo centralizado entre ele e a Cris, e às vezes o Dean. Então, as coisas se ajeitaram naturalmente. Foi uma combinação de habilidades. Você vai ver que também identificará a sua!

- O André é ótimo em campo! Está me ajudando muito! – André abre um sorriso lindo que me diz que ele precisava ouvir isso. A Bia tem razão! Ele se sente intimidado pelo Hayden, e a culpa disso foi minha. Às vezes até eu me surpreendo com a minha estupidez! – Foi ele quem articulou a minha aproximação do Roberto, e isso foi fundamental para conseguirmos instalar algumas escutas e câmeras na casa dele!

Silêncio total. Percebo que Hayden, Bia e Luciano ficaram tensos.

- Eu sei que precisamos de autorização de escutas, mas não temos tempo para estas formalidades. Eu arco com as consequências, portanto que possamos localizar o John, eu assumo a culpa por esse delito.

- Estamos juntos nessa, Cris! Como sempre! Vocês já ouviram algo comprometedor? – Hayden pergunta com expressão velada.

Isso me chama atenção. Conheço Hayden suficiente para perceber que tem algo aí.

- Estávamos ouvindo algo comprometedor quando vocês chegaram! – Diz André enquanto observo meus amigos, tem algo errado, estão tensos! – Eles estavam falando sobre como encobriram o assassinato da mãe do Roberto. Pelo que entendemos, ela foi manipulada a cometer suicídio.

- Tem alguma coisa rolando que eu desconheça? Vocês estão estranhos! – Resolvo questionar.

- Estamos todos muito cansados. Acho que seria melhor nos instalarmos. Vocês também precisam descansar, e amanhã quando voltarem da agência a gente senta, conversa e analisa os fatos. Depois que vocês saírem a gente assiste as gravações e levanta tudo que for relevante, não se preocupe com isso agora!

- Como assim, Luciano? Temos um garoto sequestrado há quase um mês! Sabemos que são eles! Não há dúvida! Só precisamos descobrir o cativeiro, e você está sugerindo que eu deixe isso para amanhã? O que está rolando?

- Você está certa! Mas se trabalharmos em período integral, sem pararmos para descansar, vai dar merda! Não teremos condições de analisar todas as informações! A gente pode acabar deixando passar o que está debaixo dos nossos narizes! – Diz Hayden, e Bia completa:

- Além do mais, vocês não estão mais sós! Estamos aqui para ajudá-los! Deixe um pouco de trabalho para nós amanhã, pode ser? Senhorita “Neurótika”! Nunca podia imaginar que o nome da nossa banda fosse tão perfeito para você! – Com essa eu acabo rindo.

Tínhamos a pretensão de montar uma banda, aprendemos a tocar, compomos algumas músicas, gravamos, traçamos um caminho para a divulgação do trabalho, e aí... O nosso mundo virou ao avesso, e tive que começar a me preocupar em me manter viva!

- Tá! Tudo bem! A neurótica aqui vai deixá-los descansar! E prometo que não vou mais acessar as câmeras de segurança, vou deixar esse trabalho para vocês, para mim está de bom tamanho, já vi demais a cara desse verme por hoje!

- Thank you! – Agradece o Luciano.

Acho estranho. Ele não faz o tipo que fica incluindo frases em inglês quando está no Brasil, na verdade, tem a educação de sempre falar o idioma local, e só inclui frases em outros idiomas quando está preocupado ou tenso.

- Tudo bem contigo, Luke? Você me parece tenso!

- Não! Está tudo bem! Só o jet lag! Amanhã estarei novinho em folha!

- Então eu vou deixá-los à vontade! Não esqueçam de ter cuidado se precisarem sair de casa para o Irineu e a Nair não fugirem. Eles não gostam muito da rua, mas às vezes tentam sair! Pelo amor de Deus, não deixem!

- Não se preocupe Cris! Boa noite! Boa noite André! – Hayden me dá um beijo no rosto e um meio abraço no André. Depois repete o gesto com a Bia e o Luciano – Boa noite para vocês também. Até amanhã. Espero que o café nessa casa continue sendo bom... – E olha para mim.

Eu lhe abro um sorriso e me volto para o André:

- Como você avaliaria o café da manhã daqui de casa? – Ele abre um grande sorriso, parece feliz em ser incluído na conversa.

- Eu diria que o café da manhã nesta casa é excelente!

- Ótimo! Era tudo que eu precisava saber! – Diz Hayden com um sorriso debochado.

- Acabou de comer e já está pensando no café da manhã, Hayden?!

- Ah! Me deixa em paz, Bia! Vai pegar no pé do seu marido! – E nós todos rimos.

Ele tem um humor ímpar. Mas é uma pessoa incrível. A gente vive brincando e se provocando.  Tenho que concordar com a Bia, quem vê de fora pode até imaginar que estamos flertando, mas esse é o nosso jeito. A nossa estória acabou há muito tempo e foi o Hayden quem pôs um ponto final nela!

Vamos para o quarto, embora eu ache muito cedo para isso. Ainda são nove horas. Resolvo tomar um banho e me sinto meio ridícula em levar a minha roupa comigo. Ponho minha camiseta do Harry Potter que parece um vestido de tão grande.

Quando entro no quarto o André está só de toalha, estava esperando que eu saísse do banho para entrar. Fico com a boca seca diante da sua visão, mas disfarço.

- O banheiro está livre! – Digo indicando a porta.

- Muito obrigado! – E vai em direção ao banheiro com a mesma cara de poker que eu, quando passa por mim e dou um sonoro suspiro, ele para. Viramos juntos, e nos encaramos em silêncio.

- Você sabe que essa tensão entre nós vai piorar a cada dia, não sabe?

- Claro que eu sei, André! Mas, me dá mais um tempinho? Já parou para pensar que não tem nem uma semana que nós nos envolvemos?

- Sim! Eu sei! Mas eu sinto como se fosse há muito mais tempo! Você não sai da minha cabeça desde a primeira vez que eu te vi, há quase três semanas!

 - Eu quero que você entenda uma coisa: Eu não sei há quanto tempo, mas eu amo você!

- Como é que é? – Diz se aproximando de mim.

- Você me ouviu com muita clareza!

A sua proximidade, seus ombros largos e o calor que emana do seu corpo me deixam quente e zonza de uma forma muito boa!

- Claro que ouvi, mas eu quero que você diga de novo!

- Eu digo, mas só depois que você estiver usando um número maior de roupas!

- Tem medo de não resistir? – Diz se aproximando ainda mais. Eu fico no mesmo lugar, não vou recuar.

- Você é muito pretensioso! Mas a resposta é sim! Agora vai! Vai tomar o seu banho! – Ele envolve minha cintura com seus braços e me beija. Somos interrompidos por uma batida abafada na porta. André solta um suspiro frustrado.

- Seu anjo da guarda bate à porta! – E entra no banheiro. Sua frase tem duplo sentido e algo me diz que ele se refere a ambos.

Quando abro a porta dou de cara com o Hayden. Ele está usando um pijama preto. – Lindo que só ele – Aliás, Hayden é lindo de morrer! Vem de uma família muito bem de vida, não propriamente podre de rica, mas com bastante grana. Sua família tem um escritório vistoso na Quinta Avenida. A matriz de cinco escritórios, a Advocacia Sullivan. Ele comanda o escritório de Los Angeles. Sua vida nunca foi tediosa. Desde muito cedo frequentava festas badaladas e nem sempre porque era convidado. Hayden Sullivan é muito parecido com o ator de cinema Hayden Christensen. Sua aparência e seu primeiro nome lhe causaram muita confusão após o sucesso de “Star Wars II”. No entanto, se você se atentar perceberá grandes diferenças entre os rapazes: Hayden Sullivan é três anos mais velho, tem um metro e noventa de altura, e possui olhos negros como uma noite sem luar.

 - Oi! Está precisando de alguma coisa? – Digo rápido demais e meio ofegante. Afinal, há menos de trinta segundos era o André na minha frente!

- Queria conversar com você. – Ele faz um gesto em direção ao interior do quarto. – Cadê o André? Estou atrapalhando alguma coisa?

- Foi tomar um banho. Você não atrapalha nunca. Quer entrar?

- Na verdade eu preferiria conversar a sós com você, mas a Bia tem razão. Acho que precisamos esclarecer as coisas para o André. Acho que sem intenção a gente vem mesmo detonando as chances de ter um lance com outras pessoas.

- Você mesmo disse que a Bia estava viajando. Entre! Que estória é essa?!

- Ah, Cris! A gente não tem muito tempo para nós mesmos! E desde que terminamos, não conhecemos muita gente. Pelo menos não pessoas com as quais a gente pudesse se envolver, se relacionar. Com quantos caras você saiu desde que nós terminamos?

- Sei lá, Hay! Um ou dois. Por quê?

- Porque nunca achei nenhum deles bom suficiente para você! E dois foram os que você se interessou, porque tiveram outros! Enfim... nem sempre foi puramente despretensioso. Eu me posicionei claramente contra esses caras porque achava que não eram bons para você, e não me arrependo disso! Mas acho que agora é diferente. Esse cara aí... – ele gesticula em direção à porta do banheiro – Ele me parece um cara decente. Um cara que gosta de você de verdade, e que vai fazer qualquer coisa por você! Esse eu aprovo e dou a minha benção... se por um acaso for isso que estiver te freando... – E abre um sorriso enorme.

Sem resistir vou até ele e lhe dou um abraço. Hayden é, e sempre será meu porto seguro, e é lá que eu fico por um tempo infinito.

- Ainda bem que eu optei por sair vestido do banheiro! – Ouço a voz do André.

E eu dou um pulo pelo susto, o que pega muito mal. André sai do banheiro usando um pijama igual ao do Hayden, só que branco.

- Que susto! Quase me mata do coração! – Eu digo meio constrangida por dar mais um fora.

- Ah, mas que droga! André, não nos leve a mal, eu sei que é clichê, mas realmente não é nada disso que...

- Relaxa, Hayden! Não que eu estivesse ouvindo atrás da porta, mas eu acabei ouvindo a conversa de vocês. Eu a amo de verdade. Não vou deixar que nada de ruim aconteça a ela. E fico feliz em entender a relação de vocês. A Cris me disse uma vez que você era uma pessoa intocável na vida dela. Que a relação de vocês era muito importante para ela. Eu não tinha conseguido entender até as poucas horas que vocês chegaram.

- André, me desculpe por aquilo mais cedo. Não foi com a intenção de te magoar! Foi um gesto impulsivo, sem nenhuma malícia...

- Eu sei, Cris! E se eu disser que não me incomodou eu estaria mentindo, mas também entendi muito rápido do que se tratava. Essas são as pessoas que suprem a sua necessidade de família! São eles os seus pais, irmãos e irmãs. Vocês trocam de papeis o tempo todo! Mas estão sempre agindo como os mesmos personagens: O pai, ou a mãe, ou a irmã ou irmão mais velho. É assim que vocês agem! Acho isso incrível! Porque isso é que faz com que vocês não pirem diante de um trabalho tão louco! É a humanidade e o amor existentes entre vocês que faz com que vocês sejam bons no que fazem! É difícil estar à altura disso tudo para fazer parte dessa família!

Eu estou com os olhos completamente marejados e um nó na garganta, sem conseguir falar. O André captou realmente a essência das nossas relações. Somos mesmo a base uns dos outros. Hayden sai do meu lado e vai em direção ao André com um sorriso no rosto.

- Fico muito feliz que você tenha ouvido a nossa conversa e tenha entendido a nossa relação! Você é um cara bacana! Só não digo que é inteligente! Não sacou que já faz parte desta família? – Ele dá um tapa leve nas costas do André – Por que você acha que a Bia deu aquele show? Ou que o Luciano se preocupou tanto que vocês tenham algum momento de folga? Ou que eu apoie totalmente a relação de vocês? Você já faz parte dessa família! Se vai entrar para o time são outros quinhentos, mas para família, você já entrou!

- Valeu cara! Obrigado! – Os dois se abraçam de forma desajeitada. É natural. A amizade virá com o convívio, e felizmente já temos a perspectiva de um bom convívio. Por enquanto isso é mais do que eu esperava.

- Vou deixá-los a sós para... descansar! – Ele diz com ironia, me lembrando da conversa que tive com a Bia mais cedo – Boa noite, Cris! – Ele dá um beijo na minha testa antes de sair do quarto com um sorriso irônico no rosto.

André senta na cama na minha frente e seca minhas lágrimas com os dedos. Eu nem me dei conta de que tinha começado a chorar.

- Não chore! Eu estou aqui com você. Não chore!

Eu o abraço e procuro sua boca de forma febril. Ele solta um gemido e eu me aproveito para me apoderar de sua boca com a minha língua. Ele corresponde com igual fervor. Levanto meu corpo e jogo as minhas pernas em torno do seu quadril, sentando em seu colo. Ele puxa meus cabelos abaixo da nuca, para me fazer levantar a cabeça, e ter acesso ao meu pescoço, lá ele me beija até a orelha, despois desce em direção à minha clavícula. Eu me afasto e ele não parece surpreso até perceber a minha intenção. Eu seguro a barra inferior da camiseta do seu pijama e a levanto para tirar. Ele me ajuda levantando os braços, e logo que me livro de sua camiseta ele me agarra de volta. Seu tórax é perfeito, definido, mas sem excesso, com uma leve camada de pelos. Voltamos a nos beijar e eu desfruto da sua parcial nudez acariciando seus ombros, clavícula, tórax, omoplatas. André retorna ao meu pescoço, dá uma mordidinha na minha orelha e desce pelo meu pescoço, até meus ombros, suas mãos passeiam por baixo da minha camiseta, pela minha cintura, pelo cós da minha calcinha, depois sobem em direção aos meus seios e eu não tenho mais o menor pudor por estar ofegante e gemente, ele também está assim. Ele usa as duas mãos para abrir o fecho do meu sutiã. Eu retiro as alças por baixo da camiseta em tempo recorde enquanto voltamos a nos beijar de forma frenética, como se o mundo pudesse acabar e esta fosse nossa última oportunidade. André me tira do seu colo e me senta ao seu lado, em seguida levanta e sai.

Fico com cara de idiota sem entender nada enquanto tento recuperar o fôlego. Ele vai até a porta, e a tranca. Retorna e sobe na cama ficando de joelhos no meio da cama. Repito seu gesto e vou ao seu encontro, no meio da cama de joelhos.

- Já chega de interrupções! Eu quero você! – Ele diz.

- Também quero você!

Nos aproximamos em sincronia, dessa vez sem pressa. Voltamos a explorar nossos corpos, demonstrando todo o amor do qual viemos nos privando. Somos só bocas, mãos e gemidos, sem pudor. André enfim tira minha camiseta, e ficamos ambos nus da cintura para cima e o contato da sua pele junto a minha é incrível! Seu corpo tão rígido em confronto ao meu, macio e emoldurado por curvas. Sinto que o seu toque e a sua pele na minha me farão queimar. Eu morreria feliz. Quando não há mais roupas que nos separem percebo o quanto estou envolvida e apaixonada por esse homem. Por ele eu seria capaz de tudo. Por ele eu sou mais forte. Quando finalmente nossos corpos se fundem, sinto uma alegria plena e completa. Isso é felicidade. Isso é amor. Sentir seu amor através do seu corpo é uma revelação, ele é o amor que eu procurei durante todos esses anos. E com essa certeza chegamos ao êxtase, suados, cansados e saciados. Não existem mais dúvidas, ele pertence a mim tanto quando eu pertenço a ele.

Ficamos em silêncio, recuperando o fôlego. Adoro sentir o peso do seu corpo sobre o meu. Ficaria com ele assim para sempre. Não há palavras, elas são desnecessárias. Já dissemos todas as palavras não ditas enquanto fizemos amor. Com esse pensamento pego no sono.

Acordo mais tarde com o miado no Irineu na porta. Levanto da cama procurando minhas roupas, após vesti-las, saio do quarto o mais silenciosamente possível para não acordar o André. Pego meu gato no colo e resolvo beber um pouco d’agua. No caminho, ouço as vozes dos meus amigos. Estranho! Tinham dito que iam dormir. Ouço a voz da Bia:

- Não gosto de omitir informações do caso para a Cris. Não é justo! Não é correto!

- Também não estou feliz com essa situação, amor! Mas não podemos permitir que uma suspeita ponha nosso caso em risco, ela vai perder o foco, e isso vai atrapalhar. – Diz Luciano.

- Ela não é tão frágil assim! Esquecem tudo que ela já enfrentou?! Acho que vocês a subestimam!

- O fato dela ser tão boa quanto você para sair dando porrada por aí, não significa que ela não seja sensível!

- Sério, Bia? Você vem falar isso justo para mim?! E só para constar: Eu. Tenho. Sentimentos! Não aguento vê-la fragilizada!

- E quais são esses sentimentos, Hayden?

- Sempre foi e sempre será amor! Existem vários tipos de amores, sabia disso, Bia? Eu tenho um até para você, que me enche o saco pra kct!

- Também te amo, Darth!

- Amamos você também, Cris! – Diz Luciano dando um passo para trás. – Está nos ouvindo há muito tempo? – Irineu me denunciou miando para que eu o colocasse no chão. A Nair está esparramada no colo da Bia.

- Só tempo suficiente para saber que vocês estão me escondendo alguma coisa. – Digo me aproximando – Vocês sabem o quanto detesto isso!

- Acredite amiga, é necessário! Mas acho que vamos descartar amanhã mesmo essa questão. Assim que se tornar uma certeza a gente conta para vocês. Combinado?

- Vocês?! Como assim?

- Você e o seu gatinho. Realmente adorei o André! Gosto do jeito que vocês se olham, lembra... – E Luciano pigarreia. Bia entende seu gesto e revira os olhos. – Você gosta de rapazes de olhar negro e perigoso! – Nós duas rimos e os meninos ficam com cara de mal humor.

- Por favor, garotas! Estamos aqui! – Diz Hayden. – E aí, Cris?! Descansaram? Você me parece mais relaxada... – Ele me lança um sorriso malicioso.

- Opa! O que nós não estamos sabendo? – Luciano pergunta com uma risada sacana.

Já vi tudo! Vão me encher o saco!

- Fui falar com a Cris e o André. Seguir o conselho da Bia, e acho que atrapalhei alguma coisa.

- Que merda! Não acredito que quando finalmente ia rolar, você apareceu para atrapalhar!

- Como é que é? – Perguntam Hayden e Luciano juntos. Fico vermelha de vergonha e raiva da minha adorável amiga.

- Droga! Foi mal, Cris! Eu e a minha boca grande! Ah! Estamos entre amigos!

- Beatriz Meyer Mendes! Que inferno! E não me olhem assim! Vida íntima é vida pessoal!

- Ou não! Sem problemas! A gente sempre pode recorrer ao André! – Diz Hayden,

- Ah, é? E como seria a sua abordagem?! Que chatice! Agora me digam uma coisa: Por que não estão dormindo?

- Jet lag é uma merda! Estamos cansados, mas não conseguimos dormir! Daqui a pouco a gente entra no eixo!

- Tomara, Luke. Tomara! E vejam os vídeos, tenho certeza que terá informações úteis, descobrimos em poucos momentos de monitoramento que o Roberto é de fato integrante da gangue, manipulou o suicídio da mãe e possui mais dois sócios! – Uso a mão direita para enfatizar o número de descobertas.

- Dois sócios?! – Os três repetem juntos.

- Sim! Existe mais uma pessoa além do Roberto e do Mauricio.

E o silêncio se instala na sala.

- Vocês já sabiam disso? Era essa a suspeita?

- Relaxa, Cris! Você só nos surpreendeu com essa informação! Eu fico até desanimada! Mais uma pessoa para identificar? Merda! E, pobre John! – Diz Bia, enquanto ofega, mas não me convence.

- Calma pessoas! A gente sempre consegue! Vai dar certo! E Cris? Volta para cama, vocês precisarão trabalhar amanhã. – Fala Luciano.

- Tem razão. Boa noite, meus amores! Que horas são? Nossa! Quase uma hora! Tchau! - E corro em direção ao quarto.

Abro a porta com cuidado, mas o André não está na cama. Ouço som do chuveiro ligado. Tenho vontade de ir até lá, mas uma estranha timidez me domina.

AiMeuDeus! Acabei de ir para cama com ele! Passamos por várias situações nos últimos dias, por que estou constrangida?

Acho que conheço o motivo: Insegurança. Tenho medo que no fundo tudo que ele quisesse era apenas me levar para cama. Balanço a cabeça em negação. Uma transa não vale todo esse trabalho! Nem mesmo uma perfeita! Ele sai do banheiro só de toalha.

- Oi – Digo com um fiozinho de voz. Ele abre um grande sorriso.

- Oi amor! Onde foi? – Ele senta ao meu lado na cama e me dá um selinho.

- Ouvi o Irineu miando. Fui até ele e resolvi beber um copo d’água... estão todos lá! Estão me escondendo alguma coisa!

Percebo que a sua proximidade me afeta. Minha pele, meu sangue se aquecem. Ele me afeta com mais força do que antes. É como se estivesse me transformado em um viciado.

- Você acha que é algo sério? – E pega na minha mão.

- Com certeza! O Luciano acha que eu posso pirar e perder o foco. É sério! Mas me prometeram uma resposta! Provavelmente amanhã.

- Então para de sofrer por antecipação! Vamos nos concentrar no caso, em nós, e quando esse assunto vir à tona a gente resolve da melhor forma possível. Que tal?

- Acho perfeito! Acho que vou tomar um banho também!

- Ah, não vai não! Vem aqui!

E nos beijamos e fazemos amor mais uma vez.

-  Sabe o que eu reparei? – Diz André.

- Não! O que foi?!

- Ontem foi a primeira vez que passamos uma noite inteira na cama juntos. Você não teve pesadelo.

- É verdade! Não tenho pesadelos quando você dorme comigo. Estranho... e com certeza também é ótimo!

- O que lhe causam estes pesadelos, amor? Eu preciso saber! Eu prometi ao Hayden que cuidaria de você, mas para isso eu preciso saber.

- Eu sei! Preciso te contar uma estória. Para que você entenda parte da causa dos meus pesadelos. Meu pai me odeia! Acho que essa parte você já entendeu!

- Não acredito que ele te odeie! Eu realmente quero ouvir essa estória. Mas não quero forçar a barra!

- Não! Vai me fazer bem! Eu preciso me resolver com isso porque eu não posso permitir que essa ferida me cause mais problemas. Eu fiz uma grande besteira em Nova Orleans movida pelos meus traumas. Que horas são?

- Quase uma e meia. Não me importo! A gente chega mais tarde na agência.

- Ok! Você entra mais tarde. Eu vou cedinho, não tem problema! Preciso te contar essa estória:

 

 

Espero que tenha curtido os primeiros cinco capítulos de POKER FACE! 

Agora vocês já conhecem a estória e um pouco mais sobre a nossa heroína.

O livro está disponível no Clube de Autores. Lá vocês também encontraram a continuidade da estória, ou se preferir o início dela, já que em POKER FACE II, Cristina narra como sua vida mudou de aspirante a estrela do rock a agente secreta do FBI! Espero que curtam e obrigada por ler está obra que ainda está em desenvolvimento. Estou com a esccrita pela metade de POKER FACE III, quando todos os mistérios se esclarecem e rumamos para um finl emocionante para Cristina e seus amigos!!!

Se você leu até o fim, muito abrigada pela sua atenção! Espero que tenha gostado!  Riso

Abraços!

Glaucia Pereira, (Glau Grauss).